domingo, 30 de outubro de 2011

Sobre Árvores e Sonhos



Correndo o risco de me enveredar por uma lista de lugares comuns, eu afirmo: sonhos são plantas. São organismos vivos e pulsantes, que dão flores e frutos conforme as condições que lhe sejam dadas.


Alguns deles são interessantes porque nascem espontaneamente, como árvores semeadas por pássaros. A respeito desses, pode-se dizer que sua beleza reside no inesperado, em sua capacidade nata de surpreender, de surgir - distinto - em uma paisagem onde não se esperava encontrá-lo. Falo, aqui, de coisas como uma vontade súbita de comer crème brûlée em Paris, falando o idioma local, a caminho de um curso que jamais se pensou em frequentar. Os sonhos semeados por pássaros são aqueles pelos quais nunca pedimos, mas que simplesmente aparecem em nossas vidas. Surgem sem quê nem porque e apenas são, sem que se saiba de onde vieram e porque foram parar ali.


Há as aspirações que nos chegam na forma de pequenas mudas. Elas estão disponíveis para consumo, prontas para o plantio. São os sonhos que, espera-se, tenhamos - uma casa, um carro, uma profissão, talvez um casamento e filhos. Esses já vêm meio nascidos e criados, porque já foram sonhados por outras pessoas em nosso lugar. São sementes que não plantamos, mas consumimos - por vontade, necessidade ou para atender às expectativas - o que eu chamaria de "sonhos padronizados". Não se engane: por mais rebelde e original que você seja, por mais distante que esteja das convenções sociais, você vai ter um desses.


Os sonhos que escolhemos ter são aqueles cujas sementes plantamos e cujo desenvolvimento acompanhamos. Podemos, ao longo da vida, plantar várias sementes. Isso não quer dizer, entretanto, que elas chegarão a dar frutos. Recordem a experiência do feijão plantado no algodão. Alguns desejos são assim, plantados e regados, mas não têm condições para se desenvolverem a contento. Outros, felizmente, são plantados em solo fértil, em corações com firme propósito para realizar. Esses prosperam, crescem e se tornam robustas árvores frutíferas.


Considere o leitor, todavia, que nem toda árvore encontra sua utilidade na produção de frutos: algumas são destinadas a embelezar os ambientes. Da mesma maneira, alguns sonhos servem para tornar nossa vida mais colorida, mais exuberante. Destinam-se a se tornarem nossos motivos para suspirar numa tarde de quarta-feira, por exemplo. 


Não importa a finalidade, uma coisa é comum a todas as aspirações: elas só se desenvolvem mediante o cuidado. É mister dedicar tempo e atenção aos próprios sonhos, sob pena de que eles nunca passem de pequenas experiências em chumaços de algodão. É necessário que se dê aos sonhos aquilo de que eles precisam para se tornarem fortes e robustos, para que sejam mais que pequenos brotos. Dê aos seus sonhos sua atenção, intenção, firmeza de caráter e liberdade. Dê a eles espaço para crescer e eles tornarão sua vida mais colorida, rica e interessante - para dizer o mínimo.


Beijinhos
Fê Coelho

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Carta ao Senhor Futuro



Senhor Futuro

Escrevo estas linhas sem saber, a bem da verdade, que destinatário há de recebê-las. Não conheço você e acredito que nosso encontro esteja tão próximo quanto o de duas retas paralelas. Considere que o senhor está sempre alguns passos, metros, segundos, dias - que seja - à minha frente. Assim, quando chego a encontrar algo que remeta a você, é um fragmento do presente ou do passado.

Seus hábitos, Senhor Futuro, são difíceis de aceitar, para não dizer entender. Sua presença é algo invariavelmente nebuloso: ora com promessas de campos verdes e infinitas delícias, ora com ameaças de tormentas. Fosse eu um homem, talvez aceitasse o fato de que sua figura é feminina, melindrosa, faceira e perigosa - sempre acenando e piscando longos cílios de promessas que talvez nunca venha a cumprir, postando-se uma esquina à minha frente, travestindo-se a cada momento, usando artimanhas e camuflando o que há de vir.

Não se irrite com essas questões de gênero. Esse é um ponto indiferente para mim. Seja você algo feminino ou masculino, tanto faz. Só peço que seja gentil comigo, Senhor Futuro. Seja, por favor, indulgente com meus erros de agora, em consideração ao aprendizado que virá e você - muito antes de mim - tem como acessar. Não me julgue enfadonha em meus lamentos, nem excessivamente inocente em minhas alegrias. Considere que sou apenas o encontro de você, com aquilo que já foi, com o que veio sendo ao longo dos anos.

Dito isto, me surgiu uma dúvida: quem vai ao encontro de quem? Somos nós que caminhamos para você, sempre buscando, garimpando os dias vindouros; ou você que se deixa para trás, como uma trilha de momentos, procurando ser novamente, aconselhar e reviver? Você é perseguido ou se deixa atrasar?

De qualquer maneira, Senhor Futuro, em nome do Presente - momento em que fingimos nos encontrar, mas que é tão efêmero quanto o passar de uma brisa - eu peço: seja legal. Cuide para que eu tenha uma boa dose de desapego dos dias que não posso mais tocar, dos erros que já foram cometidos e de tudo aquilo que ficou na esquina passada. Providencie uma boa dose de sensatez, para que eu não pinte o Senhor Passado nem mais tenebroso, nem mais dourado do que ele realmente foi.

E quando eu chegar aí, por favor, me receba bem. Tenha a mesa posta, lençóis novos nas camas e uma rede na sombra, para que possamos apenas estar. Não tenha pressa de ir embora; não se inquiete com minha teimosia em querer saber de seus segredos. Apenas se deixe ficar por alguns instantes, Senhor Futuro, porque sua existência me fascina, porque preciso conquistar sua confiança e porque espero despertar o seu apreço.

Um beijo grande, soprado pro infinito, onde - espero eu - você possa estar.
Fernanda Coelho

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Saci e os Tempos Modernos



Já vai longe o tempo em que o Saci perdia tempo trançando crina de cavalo, fazendo as cozinheiras perderem o ponto do bolos e assustando os viajantes. Já passou a época em que ele ficava por aí assoviando, fumando cachimbo e colocando cinza em comida. Sim senhor. O mundo evoluiu e o Saci, esperto que é, acompanhou todas as mudanças.

Ele aproveitou tudo o que a modernidade trouxe de novo e associou às inovações, suas antigas travessuras. O resultado? Uma gama infinita de traquinagens que beiram a crueldade. Sim, porque se antes ele achava engraçado esconder enxadas, agora ele descobriu o prazer de esperar os últimos quinze minutos de um download enorme para provocar uma queda de energia.

O Saci ainda mantém os velhos hábitos - esconder, estragar, bagunçar e rir da nossa cara - mas agora essas atividades estão mais refinadas, por assim dizer. Se antes ele estragava os arreios e sumia os freios dos cavalos, agora ele aprendeu a sumir as chaves dos carros. Se ele se divertia fazendo vendaval em dias de varal cheio de roupa limpa, agora ele dá um jeito de soltar graxa nas roupas dentro da máquina de lavar. O danado aprendeu a descobrir quando as pessoas estão ansiosas por uma ligação e dá a dica para os operadores de telemarketing, só para ver a decepção estampada no rosto da criatura que pega o celular no susto.

Ele descobriu um jeito de estragar as impressoras exatamente quando você mais precisa delas; de sumir com todas as canetas disponíveis num raio de cinco quilômetros, quando se precisa anotar um recado urgente; de provocar engarrafamentos históricos e puxar o freio de mão de todos os carros na frente do mais atrasado da pista. O safado aprendeu a colocar o pé na frente das mulheres quando elas saem com saltos novos, de fazer as unhas recém-pintadas se encherem de bolhinhas, de bagunçar os cabelos recém-escovados e de sumir as melhores roupas quando se quer sair.

Engana-se, é bom que se diga,  quem pensa que suas atuações estão restritas ao ambiente doméstico. Num banco, ele é responsável pelas diferenças de caixa; nas ruas, ele montou Escolas de Formação de Flanelinhas; nas escolas... bem, nas escolas ele não faz nada, porque a criançada em si já deixa todo mundo doido. Ele some relatórios, acaba com o papel das bobinas nos momentos mais inapropriados, trava os computadores, entre outras maldades.

Existe, entretanto, um lugar onde ele adora ficar: enfermarias em geral. Ah, leitor querido, você não imagina o que um Saci é capaz de fazer em uma enfermaria. Ele dança ciranda entre as camas e vai aprontando: aperta os botões das bombas de infusão, de maneira que todas apitem ao mesmo tempo; belisca as crianças, de maneira que todas chorem em uníssono; joga pó de vômito para cima, de maneira que as pobres (e já descabeladas) enfermeiras tenham que se dividir entre um e outro pobrezinho que está botando os bofes pra fora. Não bastasse isso, ele solta os curativos (ou molha), obstrui acessos venosos, esvazia os frasquinhos de medicação (de maneira que só fiquem faltando cinco gotas para inteirar a dose) e faz as pessoas pedirem algo exatamente quando você está terminando de contar a quinquagésima terceira das sessenta e quatro gotas de uma medicação. E ri, como ri, esse infeliz.

O mais incrível de tudo é que quando ele se cansa da brincadeira, vai embora sem quê nem porquê. Aí as impressoras voltam a funcionar, as canetas aparecem, as crianças voltam a comer, os computadores destravam, a chave do carro aparece e a vida segue, serena e tranquila, como se ele nunca houvesse aprontado.

Eu, todavia, não me deixo enganar. Sei que ele é persistente e que fica à espera do momento mais engraçado para agir. É por isso que, quando eu passo por um redemoinho, fico imaginando: ah, se eu tivesse uma peneira aqui... prendia esse danado e ia ter sossego.

Beijinhos
Fê Coelho



terça-feira, 4 de outubro de 2011

Desabafo e Decisão em Tempo de Guerra

Estou pensando muito seriamente em desenvolver o texto abaixo e fazer dele algo maior. É uma personagem que me apareceu há mais de ano e que, volta e meia, vem me perguntar: "Por que é que você ainda não escreveu a minha história?" Acho que estou devendo isso a ela.

Apresento a vocês a Rosa:



Faz frio hoje. Muito frio. Mas o pior de tudo é sentir que isso não é apenas uma condição climática. Sinto afirmar, caro leitor, que hoje lês a carta de uma mulher vazia. Percorres as letras e frases de uma mulher que tudo perdeu e que, por algum tempo, não soube para onde ir. O vento uivando em minha janela nada mais é que um eco fraco do meu desespero, da minha falta de opções. Se tudo pelo que vivi foi-me tirado, pelo que viverei agora?

Esse lugar desconhecido não me é mais estranho que o que sobrou de mim mesma. Sinto que até mesmo a minha imagem no espelho mudou. O mesmo rosto que outrora se mostrava liso e amigável, agora aparece carregado de um amargor indescritível. Não consigo sorrir com a mesma doçura de alguns meses atrás – não que eu tenha tentado ou tenha motivos para isso. Um sorriso que aparece em uma pessoa cuja alma foi tirada não é mais que uma ironia e decorre do torpor em que às vezes nos imergimos.

Dizer que não odeio o lugar onde estou seria uma mentira, mas também não poderia ficar em minha casa. Tudo que me era caro foi-me tirado e sinto que a melhor maneira de me recompor seja ir ao princípio de tudo. Como uma ferida que não pode cicatrizar enquanto houver tecido morto em seu leito, assim tem estado meu coração. Por mais dolorido que seja o processo, sinto que devo limpá-lo de tudo o que for necessário, para que possa novamente ficar inteira. E tal como as grandes feridas, essa deixará uma cicatriz que não poderei esquecer.

Vivi muitos anos em uma grande e imponente casa. Filha de uma família abastada, não conheci muitos motivos para me exasperar. A vida costuma ser bem fácil quando se tem tudo, não é mesmo? Vivi assim protegida durante toda a minha infância e juventude. Dos cuidados de meu pai, fui transferida às atenções de meu jovem e muito apaixonado marido. Tudo como devia ser. Passava os meus dias entre chás, bordados e conversas frívolas com minhas amigas, desempenhando bem o meu papel de respeitável dama. Enchia minhas noites com idas a teatros e conversas ao pé da lareira com meu marido. Ao contrário de minhas amigas, eu não tinha motivos para censurar-lhe os modos ou me encolher ante o seu olhar. Isaac era um homem muito carinhoso e me cercava de todas as atenções que eu podia querer.

Durante o primeiro ano de nosso casamento vivemos sós em nossa casa, sonhando com nosso primeiro filho, que nos foi dado por Deus quando eu completei vinte e um anos. Artur era um menino vigoroso e bom.  Cedo trocou seus primeiros passos e começou a falar. Ainda me lembro bem do som de seus passos e não posso descrever em palavras a solidão que essas lembranças me trazem.

Isaac era um oficial do exército e esse é o princípio de tudo o que ocorreu. Lembro-me da noite em que estávamos todos sentados em frente à lareira, ouvindo rádio. Esse seria um programa totalmente normal para aqueles dias, exceto pelo fato de Isaac se mostrar mais tenso que o habitual. Ao questionar-lhe o motivo de tanta seriedade, recebi um abraço e um beijo. Isaac disse-me que não havia motivo para preocupação. Mas eu podia sentir que algo estava muito errado. Naquela mesma noite, depois de nos deitarmos, ele disse-me que me amaria para sempre, não importava o que acontecesse. E eu senti medo, como se estivesse há um passo de uma grande perda. Hoje eu digo que teria dado minha vida para estar errada, mas eu não estava.

A Guerra havia chegado ao país, com uma força avassaladora. Como uma fábrica de viúvas e órfãos, ela estendeu seus domínios por todos os lugares. E a morte, sua funcionária mais fiel, trabalhava sem descanso. Ao seu lado, operavam a fome e o desespero. Meu marido foi destacado para o campo de batalha e ficamos, Artur e eu, em nossa casa.

A princípio eu tentava manter as coisas o mais normais possível. Brincava com Artur e cuidava da casa para que quando Isaac voltasse, pudesse ter um lar agradável novamente. Mas o tempo passou impiedoso e a miséria começou a andar em nosso encalço. Encontrei trabalho e comecei a me dedicar à tarefa de sustentar meu filho. A cidade entrou em racionamento e faltava comida, água, remédios e empregos decentes. 

O primeiro golpe, do qual tento irremediavelmente me recuperar, foi a perda de Isaac. Aquela noite fora fria e eu e Artur dormíamos juntos na cama que eu e Isaac dividíamos com tanta alegria. Dois homens fardados bateram à porta e, quando eu atendi, entregaram-me o cordão de prata com a plaquinha que identificava meu marido. Junto com isso, entregaram-me a bandeira de nossa Pátria-mãe. Disseram que sentiam muito e eu não pude saber o que eles disseram em seguida. De súbito senti-me fria e meio vazia. Voltei para o quarto e, abraçando o que sobrou de minha felicidade, chorei por horas. Meu inferno pessoal estava apenas no início.

Dois meses se passaram até que eu pudesse chorar apenas escondida. O sentimento de desamparo que se abateu sobre mim era insuportável. Observava meu filho brincando e imaginava mãe é essa, que manda seus filhos morrerem por ela. Então resolvi que seria uma mãe melhor que nossa maldita Pátria. Dediquei-me com afinco a manter meu filho feliz. Fazia-lhe as vontades sempre que possível e adequado. Brincava com ele e pescávamos. Fui para Artur tudo o que podia ser. Ele se tornou meu único motivo para continuar aqui e contemplar o trabalho incansável da morte, sem me entregar à sua carga. Mal sabia eu que ela me observava tão de perto.

Artur estava com três anos, quando adoeceu. Pneumonia, foi o que me disseram. Não havia hospitais ou remédios. Tudo estava desviado para os campos de batalha. A sanha dos homens por poder não tem limites. Quando uma luta por poder é travada, tudo o mais é colocado de lado. Pessoas dão a vida por ideais que não lhes pertencem, recursos são desviados dos que necessitam de atenção. A sensação que eu tinha era de que ao final desse período turbulento, teríamos um país povoado apenas por veteranos de guerra. E eu sequer podia contar com a esperança de encontrar entre eles o meu marido.

Ver meu filho ficar cada dia mais doente e fraco e, por fim, entregar sua vida nas mãos frias da morte foi o fim da etapa sana de minha existência. Algumas coisas simplesmente não podem ser esquecidas; e digo que ver um filho magro e enfraquecido fechar os olhos para a vida e amolecer por completo em seus braços é a pior de todas elas. Jamais poderei me esquecer de que, por um momento pude olhar nos olhos da morte e jurei vingança. Foi quando peguei meus poucos pertences e me alistei no exército, disposta a trabalhar em um Hospital de Campanha.

Não que isso seja um consolo. Passarão muitas vidas antes que eu possa dizer que estou confortada, mas poder vingar a morte de meu filho e me negar aos braços dessa trabalhadora incansável é uma maneira de me levantar todos os dias. Enquanto houver uma vida que eu possa tirar de suas mãos, ali estarei. Enquanto eu puder rir-me de suas costas se afastando, eu o farei. E me lembrarei todos os dias daqueles que ela me tirou. E essa será minha vingança.

Não me julgues feliz, caro leitor. Sinto informar que estou há muitos passos da felicidade. Mas reconhece em mim uma mulher que, mesmo amargurada, resiste.

                                                                    Rosa
                                                            18/02/1946

domingo, 2 de outubro de 2011

Eu e a Dona Expedita



Se você é psiquiatra, psicólogo, psicoterapeuta, apaixonado por essa área do conhecimento humano, ou se - no mínimo - conhece alguém que o seja, por favor, não leia essa crônica. Se você é conhecido de algum pai de santo, se faz despacho ou algo do gênero, eu peço, não leia esse texto. Porém, se você não se importa de ver que lê os escritos de uma doida varrida, vá em frente. Vou falar um pouco sobre uma personagem que mora comigo, embora eu, tecnicamente, more sozinha.

Desde que aceitei a inevitável presença da Isaura em minha vida, outros inquilinos me apareceram: a Dona Expedita e o Seu Manoel. Na verdade, só a Dona Expedita e a Isaura é que moram aqui. O Seu Manoel aparece de vez em quando, mas estou vendo a hora de ele se mudar pra cá.

A Dona Expedita é uma senhorinha já bem vivida, que sabe que casa, louça, poeira, roupa pra lavar, roupa pra passar, tudo isso vai estar aí pra sempre. Mas a minha imagem no espelho e as minhas lembranças...

Ela era filha de pais muito rígidos e morava na roça em seus tempos de menina. Casou-se aos dezesseis anos, teve nove filhos (todos homens), enviuvou e veio pra cidade. Os filhos já criados, netos encaminhados, ela começou a se aventurar pelas ruas, pelas feiras e pelo "forró dos velhos", como ela gosta de dizer. Foi lá, inclusive, que ela conheceu o Seu Manoel.

Ditinha - seu apelido para os dias de bom humor -  usa os cabelos presos num coque bem feito no alto da cabeça. Os fios prateados e a pele enrugada conferem-lhe aquela aparência frágil e condescendente dos idosos. Mas não se engane: a velha é uma peste. Tem um humor ácido, fala palavrão, não tem muita paciência com frescura, nem com chilique. Usa uma bengala que é uma arma: dê bobeira perto dela, vá encher-lhe a paciência, pra ver se não leva uma bengalada na canela! E o mais engraçado de tudo é a cara de inocente que ela faz. "Desculpe, querida. Já estou velha e não consigo controlar bem essa bengala". Aí você se vira para ir embora e só ouve o risinho abafado.

Eu e Dona Expedita, normalmente, nos damos bem. Também não gosto de frescura, nem de gente desanimada e reclamona.  Adoro quando ela me explica que as prioridades podem não ser tão óbvias e me divirto quando a gente sai pra caminhar. Nosso papo é bom, nós reparamos nas coisas e nas pessoas, rimos e ela me conta um monte de histórias.

 Isso, entretanto, não significa ausência de desentendimentos. Ditinha, infelizmente, é analfabeta. Já tentei ensiná-la, mas ela nunca quer aprender. Prefere que eu leia pra ela, com a desculpa de que "seus olhos já não são os mesmos". Eu desconfio que ela tenha preguiça mesmo. Acontece que, quando a Isaura fica muito furibunda comigo e eu - fraca que sou - resolvo fazer uma faxina, o circo está armado. E a situação é sempre pior se eu estiver lendo algo de que a Dona Expedita goste. Ela fica fula da vida e começa a aprontar: esconde o avental de joaninhas da Isaura, me faz tropeçar na bengala, esconde os panos de chão, derrama mais sujeira na casa, fura os sacos de lixo e outras maldades dignas e um saci. Eu vou passando pela casa e vendo as artes dela. Estou dizendo: a velha é uma peste! Vai muita conversa e promessa até ela se acalmar. Às vezes, eu preciso ler até as quatro horas da manhã, pra ela finalmente me perdoar.

Alguns acessos de fúria são tão intensos que eu preciso apartá-la da Isaura. Não se enganem: entre nós, mortais, existe essa coisa de idade. Mas, no que tange as entidades imaginárias, é tudo diferente. Já separei brigas intermináveis das duas. A Isaura não respeita cara de velha e a Dona Expedita é forte. Estou vendo a hora que ela vai começar a soltar aqueles poderes do Mortal Kombat. É um quebra pau dos infernos. Eu vou passando com os baldes e me desviando dos tapas e das coisas que uma joga na outra.

É claro, Ditinha e Isaura não brigam o tempo todo. Algumas vezes elas entram em acordo e eu levo a pior. A Isaura passa por mim e solta: "casa empoeirada, não?" Eu olho para a Dona Expedita com cara de cachorro que caiu da mudança, à procura de um pouco de apoio. Ela responde: "não precisa me olhar desse jeito: a Isaura tá certa". Daí eu me recolho à minha insignificância, ponho uma música alta e encho a casa de água - como sempre.

 É exatamente nesse momento que me aparece o seu Manoel, com seu terno xadrez, chapéu de palha, lenço no bolso e barba bem feita. O cheiro de colônia se espalha pela casa e ele sorri. Dona Expedita, a depender do seu humor, lhe sorri de volta ou manda por raio que o parta. Eu, particularmente, torço pra que ele a chame pra ir ao cinema ou à sorveteria - antes que ele perceba algo que precise de um pequeno reparo e eu me ferre de vez.

Beijinhos
Fê Coelho








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