Ponderei um bocado antes de postar o texto abaixo. Um bocado de gente já sabe como ele surgiu - como uma espécie de prurido, uma coisa que não te deixa em paz até você ceder e atender ao pedido. Foi assim que a Rafaela me apareceu.
Não tinha muita certeza de que queria postar, mas um amigo me disse que tinha saudades da personagem, então resolvi.
Esse capítulo não é mais assim. Reescrevi tudo depois de achar que ficou um bocado amador. Mas a título de nostalgia e de curiosidade, segue o primeiro capítulo da minha primeira história. Um bocado grande para pôr no blog, eu sei. Mas como o domínio e a senha são meus mesmo... Aí vai. A quem se aventurar, tenha o prazer (ou não) de conhecer a Rafaela.
Beijinhos
Fê
Você devia parar de fumar. As palavras de seu pai ainda ecoavam em sua cabeça, enquanto Rafaela observava a fumaça de seu cigarro subir em espirais suaves. Sentada numa cadeira confortável em seu home office, os joelhos flexionados contra o tronco, a música suave preenchendo o ambiente, ela ainda se perguntava se estaria suficientemente surpresa com o próprio comportamento, ou se ainda guardara alguma novidade para si mesma. “Claro que não!” – foi a resposta instintiva. Ela não costumava se surpreender consigo mesma. Rafaela era altamente previsível – ao menos acreditava ser.
Ela tinha 32 anos, era alta – quando comparada às amigas, magra – porém sem ser esquálida. Tinha os olhos escuros e o cabelo médio, ondulado, num tom de chocolate “completamente normal”. Era como se descrevia, sempre acrescentando ressalvas. Claro, ela se esquecia de incluir detalhes como um sorriso encantador, um andar envolvente e uma postura tão segura que era, ao mesmo tempo, um convite e um aviso. Era observadora e um tanto reservada. Estudava o momento de falar e se o próprio comentário não passasse no crivo finíssimo de sua autocrítica, o guardava em uma gaveta mental e liberava em seu lugar um sorriso amistoso ou uma resposta educada e “pré-aprovada”.
A escolha de sua profissão foi um daqueles casos em que a pessoa se deixa levar docilmente para um destino certo, tecido e bordado cuidadosamente ao longo do tempo, sem hesitação. Passou toda a vida cercada por livros. A mãe, Andréa, lia muito e dizia que os personagens eram companhias incríveis, com histórias fascinantes. “Uma boa oportunidade para vivermos algo inacreditável, que geralmente não acontece”, ela dizia após contar alguma história lida recentemente. Lembrava-se com saudades das horas passadas antes de dormir, em que era apresentada a outros lugares, pessoas e épocas. Acompanhava com avidez as tramas, encontros e desencontros dos personagens e, por vezes, sentia como se tudo pertencesse ao seu mundo. O barulho das páginas ao serem passadas, o cheiro de cada livro, o suspiro e o espreguiçar ao final de cada história. Tudo era dividido com a mãe, que se mostrava empolgada como se ela mesma houvesse percorrido aquelas páginas. Eram companheiras e dividiam a mesma paixão.
Cedo foi apresentada a personagens como o pequeno príncipe e o aviador, Pollyanna e seu “jogo do contente”, Emília, Narizinho e a turma do Sítio, sem considerar os contos de fadas, que eram de praxe. Mais tarde, enquanto toda a turma do colégio reclamava, Rafaela se encantava com os clássicos. Adorava o cenário da Ilha de Paquetá e as matas por onde andaram Ceci e Peri. Morria de pena de Isaura e até hoje se pergunta se Capitu teria mesmo traído Bentinho. Gostava bastante das personagens de vanguarda. Preferia aquelas mais altivas, menos prudentes e que diziam o que pensavam. Adolescente, ainda se lembrava com admiração de Carolina e tinha particular afeição por Elizabeth Bennet.
Com o tempo e a convivência, os livros passaram a ser uma parte inseparável de quem era. Recomendava-os aos amigos, emprestava-os e foi apenas um passo para que passasse a vendê-los. Com a ajuda dos pais e mediante o espanto da irmã, Luiza, e de sua melhor amiga, Mariana, aos 25 anos, abriu uma pequena loja de livros – O Arco da Velha.
O Arco, como Rafaela apelidara a loja, ficava numa esquina no centro da cidade. Tinha um ar nostálgico, com mesinhas e cadeiras bem dispostas sobre um soalho de madeira, paredes claras, janelas amplas e cortinas com renda, pelas quais se filtrava uma luz tão oportuna, que parecia intencional. As prateleiras estavam por toda parte e eram cheias de livros sobre todos os assuntos. Tudo remetia às histórias que lera há anos e aos saraus dos quais não participara. O lugar era bastante frequentado e logo se tornou uma das livrarias mais concorridas da cidade. Isso, graças à Luiza e seu trabalho primoroso de arquitetura e Mariana com seus biscoitos delicados, servidos com várias receitas de café. Mas o sucesso do Arco se devia principalmente à habilidade de Rafaela em receber os clientes e ao seu dom, quase sobrenatural, de encontrar exatamente o livro certo para cada leitor. Nada escapava – desde crianças até idosos e intelectuais – a todos ela conseguia agradar.
Mesmo o passar do tempo não conseguiu alterar a personalidade, por assim dizer, da livraria. O negócio cresceu e mais duas lojas foram abertas. Todas tinham o mesmo estilo e o mesmo atendimento. Rafaela fazia questão de treinar pessoalmente todos os atendentes – e o fazia com rigor. O pai, Luiz, cuidava da parte financeira e a mãe a auxiliava na escolha dos livros bem como no contato com as editoras. Rafaela se desdobrava para estar nas três lojas.
“Você ainda vai ter um infarto”, Luiz sempre dizia quando Rafaela comia apressadamente para ir para outra filial. “Definitivamente, filha, com a maneira que você treina aqueles funcionários, eles podem passar sem você por alguns dias”. Rafaela apenas sorria. Achava seu pai um tanto moderno e adorava conversar com ele. Ele via as coisas de uma maneira bastante peculiar. Um caleidoscópio. Sempre havia outro modo de enxergar as situações. Bastava apenas girar-las ligeiramente e colocá-las em perspectiva, para obter outro ponto de vista. Luiz era consolador e tinha frequentemente um conselho acompanhado do binômio risada e piscadela. Tinha bastante senso de humor e às vezes acabava por deixar as filhas mais perdidas, uma vez que raramente tinha as respostas ou reações que se esperava de um pai. Quando conversavam, Rafaela acabava por se lembrar do Sr. Bennet, balançava indulgentemente a cabeça e sorria. Depositava-lhe um beijo na bochecha e saía, ainda encantada e grata com o presente que Deus havia lhe dado.
Andréa era mais realista. Embora fosse uma leitora assídua, sempre acrescentava um comentário que mostrasse o lado prático de todas as histórias. Ensinou Rafaela a ler, mas a ensinou também a interpretar e criticar – no melhor sentido da palavra. Não era dada a leviandades ou à maledicência. Foi uma mãe muito justa, que estimulava as filhas a se desenvolverem naquilo que as aprazia. Gastava horas do dia organizando exposições, nas quais Luiza mostrava seus “projetos” aos familiares. No entanto, não deixava de dar suas opiniões, fossem favoráveis ou não aos desenhos da filha. Ao lidar com fornecedores, era implacável. Frequentemente conseguia preços melhores e livros difíceis de encontrar. Por incrível que pareça, raramente ouvia a palavra “esgotado” e os estoques das lojas viviam impecáveis. Outro ponto a favor de Andrea: ela era impossivelmente organizada.
Luiza era sonhadora, tipicamente uma pessoa intuitiva e altamente criativa. Não raro perdia o olhar em algum lugar ou possibilidade que ninguém mais enxergava. Dedicava-se aos desenhos com afinco e estava sempre pronta a reformar. Aliás, adorava modificar tudo – do ambiente e móveis da casa à vida amorosa da irmã. Gastou várias noites projetando o visual do Arco, até que ficou “perfeito”. Foi o que Rafaela disse quando Luiza lhe mostrou o desenho da primeira loja. As duas passaram dias percorrendo antiquários e Luiza, aos poucos, foi encontrando cada peça que se encaixava naquilo que ela definia como “o melhor lugar para encontrar livros, café e boas companhias”. A qualidade que mais inspirava a admiração de Rafaela era a impulsividade quase infantil com que Luiza se entregava a uma novidade. Tudo era motivo para devaneios. Desde uma mesa necessitada de uma demão de tinta ou de um novo tampo, até um olhar diferente ou uma conversa desinteressada de algum cliente novo. Tudo eram possibilidades. Era meio infantil, mas essa vivacidade casava perfeitamente com suas feições frescas e joviais. Era mais baixa que a irmã, tinha as formas bem feitas, os olhos muito vivos, os cabelos curtos, num estilo Chanel bastante repicado e cantava o tempo todo. Tinha seu próprio escritório e assinava a produção de inúmeras casas na cidade.
Mariana sempre fora a melhor amiga das duas irmãs. Eram um trio e tanto – Rafa, Lu e Mari. Cresceram juntas e nunca se separaram. Mesmo depois do casamento da amiga, as duas irmãs continuaram a recrutá-la para as compras e vários passeios, em que falavam de tudo. Mari tinha um casal de filhos: Lilian, que fora apelidada de Lily e Tiago, que foi premiado com o codinome Tico. Vitor fora seu namorado desde sempre e mostrou-se contente em contribuir para “a melhoria da qualidade gastronômica do Arco”. Traduzindo: devorava todos os biscoitos que Mariana fazia e fingia ficar na dúvida entre um sabor e outro, só para comer mais um de cada. Formavam um casal muito divertido. Transbordavam felicidade e harmonia. No geral, a família lembrava a Rafaela algo como um comercial de margarina ou aquelas comédias românticas totalmente “água-com-açúcar”. Uma referência de relacionamento bem sucedido, com direito a beijos estalados, telefonemas no meio da tarde e brigas bobas.
Rafaela teve alguns relacionamentos até parecidos, mas que acabaram por não dar certo. Alguns bem que duraram, mas havia algo que não se encaixava. Era como se faltasse alguma coisa. A maioria dos seus namorados era do tipo certinho. Vestiam-se bem, eram cultos e “incrivelmente chatos”. A opinião de Lu sobre os ternos que visitavam a irmã era invariavelmente ácida. “Pelo amor de Deus, Rafa. Eu tenho certeza de que você não é rabugenta a ponto de só atrair esse tipo de homem. Eles são programados, corretos, nunca se atrasam, são mega responsáveis, estáveis, lêem coisas que nenhum mortal lê, mas, convenhamos, definitivamente não fazem você feliz. Há tempos não vejo você com um brilho diferente no olhar, mesmo estando acompanhada”.
Lu estava certa. Rafaela acabava terminando os namoros, embora os namorados recentes nunca fizessem nada de errado. Talvez fosse isso que faltava – uma pequena dose de inesperado, uma pitada de irresponsabilidade, emoção. Mas ela precisava acrescentar que os últimos acontecimentos foram emocionantes além da medida, e muito sofridos, diga-se de passagem. Já havia feito coisas irresponsáveis antes. Namorara garotos mais velhos e meio encrenqueiros no tempo da escola. Já fugira de aulas, viajara escondido e aprendera a fumar. Mas em nenhum momento as coisas que fizera mudaram drasticamente a pessoa que era. Seu caráter nunca havia sido posto à prova como agora. Além disso, havia mais que uma questão de caráter norteando toda a bagunça em que se encontrava.
Foi então que voltou ao presente. Não havia propósito em ficar lembrando as coisas irresponsáveis que aprontara no colegial. Agora era tudo diferente. Já não tinha mais 16 anos e um namorado irresponsável – tinha exatamente o dobro da idade, estava sozinha, confusa e sofrendo por vários motivos diferentes. Urgh.
Levantou-se da poltrona, acendeu outro cigarro e ficou olhando pela janela. La embaixo, na avenida, a vida se desenrolava em trânsito. Quantas daquelas pessoas tinham uma vida perfeita? Quantas estariam levando arrependimentos para casa? Com relação à primeira pergunta, ela tentava se convencer de que a resposta seria um conjunto vazio. Quanto à segunda, estava fazendo o melhor para acreditar que não pertencia ao grupo.
- Definitivamente eu preciso de um banho. Estou um trapo, disse enquanto se olhava no espelho sobre o aparador.
Terminou o cigarro, caminhou lentamente para o quarto, tirou os sapatos e os guardou – nada de deixar para mais tarde – se despiu e pôs as roupas no cesto. Mais uma olhada no espelho a convenceu de que não tinha mais 16 anos. A mulher que a encarava do outro lado era exuberante e bem bonita, mas hoje se mostrava cansada. Rafaela abanou a cabeça e virou as costas para sua imagem. Ligou o chuveiro e esperou lavar a tristeza com a água do banho.