quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Os cinco sentidos da saudade



Saudade é um bichinho melindroso que fica à espreita do momento oportuno para atacar. Esse bichinho não faz distinção de sexo, raça ou classe social. Sua única exigência é que a pessoa tenha sido, por pelo menos um dia, feliz. Funciona como imposto de renda retido na fonte – inevitável. Quanto mais felicidade se acumula, mais saudade se pode experimentar. E não adianta reclamar: a saudade vem, e pronto! O melhor que podemos fazer é lidar com ela e aproveitar as memórias que ela desperta.

Depois de pensar um pouco sobre esse sentimento diferente, que só existe na língua portuguesa, descobri que experimentamos a saudade com todos os nossos sentidos. Ela tem gosto, cheiro, tato, som e nos remete a visões.

Saudade tem gosto de pirulito, balinha e pipoca. Tem gosto de comida de avó, de bolinho frito e churrasco de fim de semana. Tem paladar de balinha de menta no beijo do namorado, de fruta colhida no pé. O gosto da saudade lembra qualquer coisa parecida com sopa em dia frio, com chocolate e algodão doce, com água de coco na praia. Lembra muito aquele vinho bom tomado em boa companhia e a cervejinha com amigos.

Saudade tem cheiro de terra molhada, de alho fritando na panela, de perfume de mãe. Cheira como as rosas do primeiro buquê que se ganha, como os cabelos suados de nossos filhos dormindo. Tem o perfume de um banho longo e de maresia. Tem cheiro de mato, de bicho, de casa e de roupa lavada. Saudade cheira como bombinhas em festa de São João. Lembra o perfume doce daquela irmã ou amiga que você adora.

O toque da saudade é o abraço do pai, o bater de mão do amigo. Sente-se a saudade como os cabelos macios das crianças e a pele enrugada e frágil dos idosos. Tem a textura de terra ou areia sob os pés. É fria como banho de chuva ou de cachoeira. É quente como ficar debaixo do cobertor favorito sem fazer nada – um filme no máximo. É dura como o chão que fica debaixo de nossos pés quando alguém se despede. Confortável como colchão de mola e acolhedora como dormir abraçado.

Saudade tem som de risada, de música de criança, de chuva tamborilando no telhado. É a música favorita e aquela de que nunca gostamos. É a voz dos filhos, amigos, irmãos e pais. São as histórias daqueles que não mais encontraremos. Saudade tem som de campainha de telefone, de pneus de carro chegando de passos na escada. Saudade tem barulho de pezinhos miúdos andando em casa durante a noite. Tem barulho de água de rio e de ondas quebrando na praia. É barulho de recreio, o som da primeira balada, o pedido de casamento. Saudade tem som de chegada e partida. E saudade é também o silêncio que vem após as despedidas e que cala as palavras desnecessárias no reencontro.

As visões que a saudade desperta são o rosto dos que amamos e os lugares que vimos. Saudade se mostra como a paisagem passando ligeira ao lado do carro, como as nuvens – todas niveladas – vistas na primeira viagem de avião, como o mar, visto pela primeira vez. Saudade se parece com filhotes, com bebês que mudam todos os dias. Saudade é o nosso rosto no espelho – a infância que se transformou dia após dia, que adolesceu e amadureceu sem que tenhamos percebido.

Se ninguém pode sentir saudade daquilo que nunca teve, esse sentimento é o certificado de que se foi feliz. É o ISO das pessoas que souberam viver. É a prova incontestável de que nosso coração bombeia sangue dia e noite por uma boa causa.

Beijinhos


Imagem: Saudade - Almeida Junior

2 comentários:

Unknown disse...

AMIGA
ESTOU APAIXONADA POR SEUS TEXTOS, LINDOS DE MORRER...........

Fernanda Coelho disse...

Que bom que gostou, Gisa. Esse texto foi escrito num dia em que eu estava sentindo falta de todo mundo. E tinha uma frasesinha me incomodando "saudade tem gosto de pipoca". Foi a partir dessa ideia que construí o restante da crônica.

Beijos

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