quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Segue o seco



Ah, o cerrado! Com suas árvores retorcidas, flores coloridas, frutas com sabor exótico, crepúsculos lindamente alaranjados, cachoeiras maravilhosas e... um clima insuportável.

Eu juro que gosto de ser goiana. Sou apaixonada pelo meu estado, pelas pessoas hospitaleiras, pela cultura da simplicidade e pelas comidinhas meio goianas meio mineiras. Encanta-me o pôr-do-sol poético, laranja-rosado, emoldurando os ipês e angicos, anunciando noites frescas de céu estrelado e de histórias a perder de vista. Mas precisava ter um clima tão intragável?

Não há um meio termo confortável. Ou é chuva ou é seca. Ponto final. E assim ficamos sempre num descontentamento de uma rabugice pior que o clima.

Ou reclamamos por termos chuva demais, ou por ela estar ausente - completamente sumida, exilada para outros estados com Mata Atlântica, florestas, mata de araucárias ou coisa que o valha.

O período compreendido, aproximadamente, entre os meses de outubro e maio é de chuva. Chuva pra valer! Caem torós de enxarcar os ossos, virar guarda-chuvas do avesso, transformar as ruas em queijos suíços e sujar as roupas de lama. São dias de tempestades no final da tarde, que escolhem exatamente a hora de voltar para casa e buscar as crianças na escola. Mas que, apesar de tudo, são infinitamente melhores que os meses da seca. Sim, porque precisamos ter o mínimo de umidade no ar. Afinal de contas, não estamos no Saara!

O restante dos meses do ano é ocupado por bronquites, alergias, dermatites atópicas, narizes sangrando, dores de cabeça e um rosário de lamúrias que só quem passa mais de cem dias sem chuva sabe rezar. Não há hidratante que chegue, nem soro fisiológico que baste. São dias de poeira, vento, carros sujos, limpeza de chão várias vezes ao dia, nebulizações, sol escaldante, toalha molhada na cabeceira da cama e um arsenal de técnicas para melhorar a umidade do ar.

A parte boa de se ter um período assim tão definido de seca é que se pode marcar um churrasco com dois meses de antecedência. Mesmo estando em maio, pode-se marcar um evento para um dia inteiro de agosto. Não vai chover, eu garanto. Nem uma gotinha.

Perdoem-me a rabugice. Estamos há semanas nesses pródromos de chuva e já estou estressada. A expectativa e o tempo cinzento de poeira e fumaça (sim, nossos parques estão tostados - de novo) me deixam irascível. Mesmo a despeito das noites avermelhadas que eu tanto amo.

Preciso comprar um guarda-chuva de cinco reais - para virar do avesso quando eu mais precisar dele. Quando as gotas pararem de se desviar de mim, meu humor provavelmente ficará melhor.
Até lá, segue o seco!

Beijinhos

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Os cinco sentidos da saudade



Saudade é um bichinho melindroso que fica à espreita do momento oportuno para atacar. Esse bichinho não faz distinção de sexo, raça ou classe social. Sua única exigência é que a pessoa tenha sido, por pelo menos um dia, feliz. Funciona como imposto de renda retido na fonte – inevitável. Quanto mais felicidade se acumula, mais saudade se pode experimentar. E não adianta reclamar: a saudade vem, e pronto! O melhor que podemos fazer é lidar com ela e aproveitar as memórias que ela desperta.

Depois de pensar um pouco sobre esse sentimento diferente, que só existe na língua portuguesa, descobri que experimentamos a saudade com todos os nossos sentidos. Ela tem gosto, cheiro, tato, som e nos remete a visões.

Saudade tem gosto de pirulito, balinha e pipoca. Tem gosto de comida de avó, de bolinho frito e churrasco de fim de semana. Tem paladar de balinha de menta no beijo do namorado, de fruta colhida no pé. O gosto da saudade lembra qualquer coisa parecida com sopa em dia frio, com chocolate e algodão doce, com água de coco na praia. Lembra muito aquele vinho bom tomado em boa companhia e a cervejinha com amigos.

Saudade tem cheiro de terra molhada, de alho fritando na panela, de perfume de mãe. Cheira como as rosas do primeiro buquê que se ganha, como os cabelos suados de nossos filhos dormindo. Tem o perfume de um banho longo e de maresia. Tem cheiro de mato, de bicho, de casa e de roupa lavada. Saudade cheira como bombinhas em festa de São João. Lembra o perfume doce daquela irmã ou amiga que você adora.

O toque da saudade é o abraço do pai, o bater de mão do amigo. Sente-se a saudade como os cabelos macios das crianças e a pele enrugada e frágil dos idosos. Tem a textura de terra ou areia sob os pés. É fria como banho de chuva ou de cachoeira. É quente como ficar debaixo do cobertor favorito sem fazer nada – um filme no máximo. É dura como o chão que fica debaixo de nossos pés quando alguém se despede. Confortável como colchão de mola e acolhedora como dormir abraçado.

Saudade tem som de risada, de música de criança, de chuva tamborilando no telhado. É a música favorita e aquela de que nunca gostamos. É a voz dos filhos, amigos, irmãos e pais. São as histórias daqueles que não mais encontraremos. Saudade tem som de campainha de telefone, de pneus de carro chegando de passos na escada. Saudade tem barulho de pezinhos miúdos andando em casa durante a noite. Tem barulho de água de rio e de ondas quebrando na praia. É barulho de recreio, o som da primeira balada, o pedido de casamento. Saudade tem som de chegada e partida. E saudade é também o silêncio que vem após as despedidas e que cala as palavras desnecessárias no reencontro.

As visões que a saudade desperta são o rosto dos que amamos e os lugares que vimos. Saudade se mostra como a paisagem passando ligeira ao lado do carro, como as nuvens – todas niveladas – vistas na primeira viagem de avião, como o mar, visto pela primeira vez. Saudade se parece com filhotes, com bebês que mudam todos os dias. Saudade é o nosso rosto no espelho – a infância que se transformou dia após dia, que adolesceu e amadureceu sem que tenhamos percebido.

Se ninguém pode sentir saudade daquilo que nunca teve, esse sentimento é o certificado de que se foi feliz. É o ISO das pessoas que souberam viver. É a prova incontestável de que nosso coração bombeia sangue dia e noite por uma boa causa.

Beijinhos


Imagem: Saudade - Almeida Junior

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

De como percebi a diferença entre agradecer e se sentir grato



  Há algum tempo me aconteceu um momento de contemplação. Havia chegado do trabalho cansada. O dia fora longo e os pacientes exigentes. Foi necessário contornar um ou dois problemas e distribuir alguns sorrisos a mais – alguns demandaram mais esforço, outros menos. Sempre canto no caminho para o metrô, mas naquele dia nem uma notinha se manifestou – nem mesmo a marcha fúnebre. Estava vazia, esgotada de verdade. A sensação desses dias é de que deixei tudo com as crianças no trabalho, de que me esvaziei por completo. Cem por cento de doação.

Chegando a casa, rotina normal. Meu marido estava na sala, assistindo a um reality show, desses em que a equipe constrói uma casa em uma semana para alguma família cheia de problemas. Pensei: todo mundo tem problemas, mas nem todo mundo ganha uma casa. Ai que fome. Meu marido e eu fomos a uma dessas carrocinhas de cachorro quente, pioramos a situação de nossas artérias e fomos buscar as meninas numa festinha de aniversário.

Festinha animada. As crianças estavam eufóricas. Saíram, as duas, com uma coroa de princesa e um pote de guloseimas cada – um clássico das festas infantis. Voltando para casa, chegou o momento de lidar com o choro. A quantidade de sono de uma criança e o número de decibéis do choro é diretamente proporcional. Paciência. Crianças não têm como lidar com irritação da mesma maneira que os adultos deveriam. Para a mais nova, um banho rapidinho, mamadeira, fralda e pijaminha – do Mickey. Para a mais velha, o mesmo pacote, com exceção da mamadeira e da fralda.

Foi então que meu humor começou a mudar. “Mamãe, posso deitar na sua caminha”, a minha caçula pediu. “Claro, filhota”. Exceção à regra. Meu marido levantou a sobrancelha. Eu ignorei. Fiquei ali, deitada, com os bracinhos da minha pequena ao redor do meu pescoço. A perninha dela descansava sobre o meu quadril. Pude observar o movimento leve dos seus olhos – aparentemente já estava sonhando. Fiquei maravilhada com a maneira como sua boquinha entreaberta deixava entrever os dentes, com o desenho das sobrancelhas e as curvas das bochechas, com o som de sua respiração, com o toque macio dos seus cabelos. Admirei minha filha com todos os meus sentidos, tentando guardá-la daquele jeito na memória. Foi quando observei que havia me emocionado. Chorei diante daquela parcela de paz, da serenidade que se pode experimentar quando se está disposto a isso. Percebi que raras vezes dei tanto valor a coisas que não havia perdido.

Valorizei a integridade do meu corpo e minha capacidade de raciocinar e amar. E me senti grata pelos meus problemas diários, pelo meu trabalho e, especialmente e primordialmente, pela minha família.

Coloquei minha pequena no berço e passei para a rotina de sono da mais velha. Rezar e cantar. E desta vez, a parte dos agradecimentos foi mais extensa. Percebi que temos muito a agradecer. Não porque é de praxe, mas porque tive, naquele dia, uma pequena amostra da maravilha que é o sentimento de gratidão. Rezamos e ao colocar minha outra filha na cama, cantei uma das suas canções favoritas: Como é grande o meu amor por você.

Suspirei e me permiti ser, por uma noite, apenas feliz.


Foto: Public Domain Pictures


Beijinhos

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Sobre a simplicidade

Sem pretensão de desprezar os shoppings e todas as novidades que tentam facilitar nossa vida todos os dias, digo que prefiro a simplicidade. A vida está agitada demais para o meu gosto. Não quero escrever aqueles textos bucólicos e piegas, mas sinto falta de tranquilidade. Sinto falta do verde desorganizado e não esculpido; do cheiro de terra molhada e do barulho de gado no curral. Sinto falta de ouvir uma seriema cantando no final da tarde e de pescar lambari no riacho.
 

Todos os dias, o barulho que ouço é o mesmo: sirenes, motores, buzinas e aqueles carros de som que nos deixam malucos. Preciso de silêncio. Preciso de um pôr do sol que não seja roubado dos poucos segundos parada no semáforo. Quero ter tempo para admirá-lo. Quero uma noite sem nuvens, em que as estrelas possam ser vistas. As luzes dos prédios atrapalham bastante. Nem sei mais para que lado fica o Cruzeiro do sul.  

As coisas estão evoluindo muito rápido. Não consigo assimilar tudo. São tantos aparelhos com a sigla MP que, sinceramente, fiquei estacionada no “quatro” – espero que seja aquele que permite ouvir músicas e rádio, ver vídeos e ler textos. As crianças, cada vez mais, estão dependentes de tecnologia. Os brinquedos praticamente brincam sozinhos.  

Quero três dias sem relógio, celular, bip, horário nobre, notícias de assassinato e corrupção. Quero três dias em que minha maior preocupação seja levar água para um pé de jabuticaba e andar com cuidado no mato. Quero sentir a temperatura cair, lentamente, no final da tarde e parar para ver a silhueta dos morros quando o dia for acabando. Exijo uma chance de pôr os pés na terra, estou cansada de levar choque. Cansei de eletricidade estática.  

Gosto da vida na cidade, mas às vezes é necessário respirar. A lembrança de quem somos e de onde viemos nos mantém centrados para sabermos aonde vamos. Gosto de sanduíches, mas o frango caipira, a couve refogada e a manga colhida no pé têm seu valor. Gosto de televisão e filmes, mas me acabo de rir com histórias que só as pessoas simples de verdade sabem contar. Gosto de caminhar no parque da cidade, mas me encanta andar no mato e parar em cima de um morro, só para ver de longe as casinhas afastadas umas das outras. É bom ver que o horizonte pode estar longe. Gosto da vida que levo e do lugar em que moro. Gosto de barzinhos e de rodízio de pizza. Mas amo a sensação de tranquilidade e de leveza que só se consegue “pondo o pé na roça”.  

Por fim, peço licença a Vinícius de Moraes – e perdão aos seus fãs, se estiver cometendo alguma espécie de heresia – para adaptar uma de suas frases.  
Que me perdoem os muito high tech, mas simplicidade é fundamental.

Beijinhos

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Primeiro capítulo da primeira história que me ocorreu.

Ponderei um bocado antes de postar o texto abaixo. Um bocado de gente já sabe como ele surgiu - como uma espécie de prurido, uma coisa que não te deixa em paz até você ceder e atender ao pedido. Foi assim que a Rafaela me apareceu. 
Não tinha muita certeza de que queria postar, mas um amigo me disse que tinha saudades da personagem, então resolvi. 
Esse capítulo não é mais assim. Reescrevi tudo depois de achar que ficou um bocado amador. Mas a título de nostalgia e de curiosidade, segue o primeiro capítulo da minha primeira história. Um bocado grande para pôr no blog, eu sei. Mas como o domínio e a senha são meus mesmo... Aí vai. A quem se aventurar, tenha o prazer (ou não) de conhecer a Rafaela.
Beijinhos



Você devia parar de fumar. As palavras de seu pai ainda ecoavam em sua cabeça, enquanto Rafaela observava a fumaça de seu cigarro subir em espirais suaves. Sentada numa cadeira confortável em seu home office, os joelhos flexionados contra o tronco, a música suave preenchendo o ambiente, ela ainda se perguntava se estaria suficientemente surpresa com o próprio comportamento, ou se ainda guardara alguma novidade para si mesma. “Claro que não!” – foi a resposta instintiva. Ela não costumava se surpreender consigo mesma. Rafaela era altamente previsível – ao menos acreditava ser.
Ela tinha 32 anos, era alta – quando comparada às amigas, magra – porém sem ser esquálida. Tinha os olhos escuros e o cabelo médio, ondulado, num tom de chocolate “completamente normal”. Era como se descrevia, sempre acrescentando ressalvas. Claro, ela se esquecia de incluir detalhes como um sorriso encantador, um andar envolvente e uma postura tão segura que era, ao mesmo tempo, um convite e um aviso. Era observadora e um tanto reservada. Estudava o momento de falar e se o próprio comentário não passasse no crivo finíssimo de sua autocrítica, o guardava em uma gaveta mental e liberava em seu lugar um sorriso amistoso ou uma resposta educada e “pré-aprovada”.
A escolha de sua profissão foi um daqueles casos em que a pessoa se deixa levar docilmente para um destino certo, tecido e bordado cuidadosamente ao longo do tempo, sem hesitação. Passou toda a vida cercada por livros. A mãe, Andréa, lia muito e dizia que os personagens eram companhias incríveis, com histórias fascinantes. “Uma boa oportunidade para vivermos algo inacreditável, que geralmente não acontece”, ela dizia após contar alguma história lida recentemente. Lembrava-se com saudades das horas passadas antes de dormir, em que era apresentada a outros lugares, pessoas e épocas. Acompanhava com avidez as tramas, encontros e desencontros dos personagens e, por vezes, sentia como se tudo pertencesse ao seu mundo. O barulho das páginas ao serem passadas, o cheiro de cada livro, o suspiro e o espreguiçar ao final de cada história. Tudo era dividido com a mãe, que se mostrava empolgada como se ela mesma houvesse percorrido aquelas páginas. Eram companheiras e dividiam a mesma paixão.
Cedo foi apresentada a personagens como o pequeno príncipe e o aviador, Pollyanna e seu “jogo do contente”, Emília, Narizinho e a turma do Sítio, sem considerar os contos de fadas, que eram de praxe. Mais tarde, enquanto toda a turma do colégio reclamava, Rafaela se encantava com os clássicos. Adorava o cenário da Ilha de Paquetá e as matas por onde andaram Ceci e Peri. Morria de pena de Isaura e até hoje se pergunta se Capitu teria mesmo traído Bentinho. Gostava bastante das personagens de vanguarda. Preferia aquelas mais altivas, menos prudentes e que diziam o que pensavam. Adolescente, ainda se lembrava com admiração de Carolina e tinha particular afeição por Elizabeth Bennet.
Com o tempo e a convivência, os livros passaram a ser uma parte inseparável de quem era. Recomendava-os aos amigos, emprestava-os e foi apenas um passo para que passasse a vendê-los. Com a ajuda dos pais e mediante o espanto da irmã, Luiza, e de sua melhor amiga, Mariana, aos 25 anos, abriu uma pequena loja de livros – O Arco da Velha.
O Arco, como Rafaela apelidara a loja, ficava numa esquina no centro da cidade. Tinha um ar nostálgico, com mesinhas e cadeiras bem dispostas sobre um soalho de madeira, paredes claras, janelas amplas e cortinas com renda, pelas quais se filtrava uma luz tão oportuna, que parecia intencional. As prateleiras estavam por toda parte e eram cheias de livros sobre todos os assuntos. Tudo remetia às histórias que lera há anos e aos saraus dos quais não participara. O lugar era bastante frequentado e logo se tornou uma das livrarias mais concorridas da cidade. Isso, graças à Luiza e seu trabalho primoroso de arquitetura e Mariana com seus biscoitos delicados, servidos com várias receitas de café. Mas o sucesso do Arco se devia principalmente à habilidade de Rafaela em receber os clientes e ao seu dom, quase sobrenatural, de encontrar exatamente o livro certo para cada leitor. Nada escapava – desde crianças até idosos e intelectuais – a todos ela conseguia agradar.
Mesmo o passar do tempo não conseguiu alterar a personalidade, por assim dizer, da livraria. O negócio cresceu e mais duas lojas foram abertas. Todas tinham o mesmo estilo e o mesmo atendimento. Rafaela fazia questão de treinar pessoalmente todos os atendentes – e o fazia com rigor. O pai, Luiz, cuidava da parte financeira e a mãe a auxiliava na escolha dos livros bem como no contato com as editoras. Rafaela se desdobrava para estar nas três lojas.
“Você ainda vai ter um infarto”, Luiz sempre dizia quando Rafaela comia apressadamente para ir para outra filial. “Definitivamente, filha, com a maneira que você treina aqueles funcionários, eles podem passar sem você por alguns dias”. Rafaela apenas sorria. Achava seu pai um tanto moderno e adorava conversar com ele. Ele via as coisas de uma maneira bastante peculiar. Um caleidoscópio. Sempre havia outro modo de enxergar as situações. Bastava apenas girar-las ligeiramente e colocá-las em perspectiva, para obter outro ponto de vista. Luiz era consolador e tinha frequentemente um conselho acompanhado do binômio risada e piscadela. Tinha bastante senso de humor e às vezes acabava por deixar as filhas mais perdidas, uma vez que raramente tinha as respostas ou reações que se esperava de um pai. Quando conversavam, Rafaela acabava por se lembrar do Sr. Bennet, balançava indulgentemente a cabeça e sorria. Depositava-lhe um beijo na bochecha e saía, ainda encantada e grata com o presente que Deus havia lhe dado.
Andréa era mais realista. Embora fosse uma leitora assídua, sempre acrescentava um comentário que mostrasse o lado prático de todas as histórias. Ensinou Rafaela a ler, mas a ensinou também a interpretar e criticar – no melhor sentido da palavra. Não era dada a leviandades ou à maledicência. Foi uma mãe muito justa, que estimulava as filhas a se desenvolverem naquilo que as aprazia. Gastava horas do dia organizando exposições, nas quais Luiza mostrava seus “projetos” aos familiares. No entanto, não deixava de dar suas opiniões, fossem favoráveis ou não aos desenhos da filha. Ao lidar com fornecedores, era implacável. Frequentemente conseguia preços melhores e livros difíceis de encontrar. Por incrível que pareça, raramente ouvia a palavra “esgotado” e os estoques das lojas viviam impecáveis. Outro ponto a favor de Andrea: ela era impossivelmente organizada.
Luiza era sonhadora, tipicamente uma pessoa intuitiva e altamente criativa. Não raro perdia o olhar em algum lugar ou possibilidade que ninguém mais enxergava. Dedicava-se aos desenhos com afinco e estava sempre pronta a reformar. Aliás, adorava modificar tudo – do ambiente e móveis da casa à vida amorosa da irmã. Gastou várias noites projetando o visual do Arco, até que ficou “perfeito”. Foi o que Rafaela disse quando Luiza lhe mostrou o desenho da primeira loja. As duas passaram dias percorrendo antiquários e Luiza, aos poucos, foi encontrando cada peça que se encaixava naquilo que ela definia como “o melhor lugar para encontrar livros, café e boas companhias”. A qualidade que mais inspirava a admiração de Rafaela era a impulsividade quase infantil com que Luiza se entregava a uma novidade. Tudo era motivo para devaneios. Desde uma mesa necessitada de uma demão de tinta ou de um novo tampo, até um olhar diferente ou uma conversa desinteressada de algum cliente novo. Tudo eram possibilidades. Era meio infantil, mas essa vivacidade casava perfeitamente com suas feições frescas e joviais. Era mais baixa que a irmã, tinha as formas bem feitas, os olhos muito vivos, os cabelos curtos, num estilo Chanel bastante repicado e cantava o tempo todo. Tinha seu próprio escritório e assinava a produção de inúmeras casas na cidade.
Mariana sempre fora a melhor amiga das duas irmãs. Eram um trio e tanto – Rafa, Lu e Mari. Cresceram juntas e nunca se separaram. Mesmo depois do casamento da amiga, as duas irmãs continuaram a recrutá-la para as compras e vários passeios, em que falavam de tudo. Mari tinha um casal de filhos: Lilian, que fora apelidada de Lily e Tiago, que foi premiado com o codinome Tico. Vitor fora seu namorado desde sempre e mostrou-se contente em contribuir para “a melhoria da qualidade gastronômica do Arco”. Traduzindo: devorava todos os biscoitos que Mariana fazia e fingia ficar na dúvida entre um sabor e outro, só para comer mais um de cada. Formavam um casal muito divertido. Transbordavam felicidade e harmonia. No geral, a família lembrava a Rafaela algo como um comercial de margarina ou aquelas comédias românticas totalmente “água-com-açúcar”. Uma referência de relacionamento bem sucedido, com direito a beijos estalados, telefonemas no meio da tarde e brigas bobas.
Rafaela teve alguns relacionamentos até parecidos, mas que acabaram por não dar certo. Alguns bem que duraram, mas havia algo que não se encaixava. Era como se faltasse alguma coisa. A maioria dos seus namorados era do tipo certinho. Vestiam-se bem, eram cultos e “incrivelmente chatos”. A opinião de Lu sobre os ternos que visitavam a irmã era invariavelmente ácida. “Pelo amor de Deus, Rafa. Eu tenho certeza de que você não é rabugenta a ponto de só atrair esse tipo de homem. Eles são programados, corretos, nunca se atrasam, são mega responsáveis, estáveis, lêem coisas que nenhum mortal lê, mas, convenhamos, definitivamente não fazem você feliz. Há tempos não vejo você com um brilho diferente no olhar, mesmo estando acompanhada”.
Lu estava certa. Rafaela acabava terminando os namoros, embora os namorados recentes nunca fizessem nada de errado. Talvez fosse isso que faltava – uma pequena dose de inesperado, uma pitada de irresponsabilidade, emoção. Mas ela precisava acrescentar que os últimos acontecimentos foram emocionantes além da medida, e muito sofridos, diga-se de passagem. Já havia feito coisas irresponsáveis antes. Namorara garotos mais velhos e meio encrenqueiros no tempo da escola. Já fugira de aulas, viajara escondido e aprendera a fumar. Mas em nenhum momento as coisas que fizera mudaram drasticamente a pessoa que era. Seu caráter nunca havia sido posto à prova como agora. Além disso, havia mais que uma questão de caráter norteando toda a bagunça em que se encontrava.
Foi então que voltou ao presente. Não havia propósito em ficar lembrando as coisas irresponsáveis que aprontara no colegial. Agora era tudo diferente. Já não tinha mais 16 anos e um namorado irresponsável – tinha exatamente o dobro da idade, estava sozinha, confusa e sofrendo por vários motivos diferentes. Urgh.
Levantou-se da poltrona, acendeu outro cigarro e ficou olhando pela janela. La embaixo, na avenida, a vida se desenrolava em trânsito. Quantas daquelas pessoas tinham uma vida perfeita? Quantas estariam levando arrependimentos para casa? Com relação à primeira pergunta, ela tentava se convencer de que a resposta seria um conjunto vazio. Quanto à segunda, estava fazendo o melhor para acreditar que não pertencia ao grupo.
- Definitivamente eu preciso de um banho. Estou um trapo, disse enquanto se olhava no espelho sobre o aparador.
Terminou o cigarro, caminhou lentamente para o quarto, tirou os sapatos e os guardou – nada de deixar para mais tarde – se despiu e pôs as roupas no cesto. Mais uma olhada no espelho a convenceu de que não tinha mais 16 anos. A mulher que a encarava do outro lado era exuberante e bem bonita, mas hoje se mostrava cansada. Rafaela abanou a cabeça e virou as costas para sua imagem. Ligou o chuveiro e esperou lavar a tristeza com a água do banho.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Agradecimento

Viram o meu banner novinho em folha? Pois é. Essa postagem se destina exclusivamente ao agradecimento.


Metall, querido (acho que ele não vai gostar da parte do querido. hahah)
Muitíssimo obrigada pelo banner lindão. Ficou maravilhoso e, sinceramente, quanta eficiência.


Só um pedido: não se candidate Nunquinha da Silva. Vai que você fica ruim em cumprir promessas. Hauhauhauhau.


Obrigada mesmo.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Quem é importante? A história de uma margaridinha.




Era uma vez uma plantinha pequena, uma margarida branquinha plantada no jardim. Ela se sentia muito engraçada no lugar onde vivia. Todas as flores eram muito coloridas e ela achava que ser branca não era a melhor coisa do mundo. As outras flores, de vez em quando, riam dela e diziam: “Que florzinha mais sem graça, toda branca, sem muito colorido, só com um amarelinho no meio.”

Um dia começou uma conversa. As plantas discutiam quem era mais importante.

A mais importante sou eu. – dizia uma roseira carregada de flores vermelha – Minhas rosas são bonitas e perfumadas e enfeitam todo o jardim.

Que nada. – dizia a mangueira – A mais importante sou eu, porque posso fazer sombra e refrescar o lugar. Além disso, sou morada de passarinhos. Continuava a mangueira, orgulhosa.

Mas você não pode subir no muro. – emendava a trepadeira – A mais importante sou eu, porque sou esperta.

Nem pensar, dona trepadeira. A mais importante sou eu – falava a grama – Eu posso cobrir todo o jardim e enfeito muito mais que vocês. Imaginem só. Um jardim sem grama perde toda a graça.

O cravo, vermelho e rendado, dizia com um vozeirão: Ora essa. Vocês são umas faladeiras. Eu sou mais importante, porque sou diferente. Sou bonito e minhas cores são vibrantes.

E começou a confusão. A samambaia dizia ser mais importante, porque podia balançar com o vento. O coqueiro se achava mais importante porque dava frutos com uma água boa para beber. A azaléia dizia que seu tom de cor-de-rosa era maravilhoso e que, por isso ela era mais importante. Cada planta tinha um motivo para se achar melhor que as outras.

A margarida estava começando a ficar muito triste. Se todas as plantas eram tão importantes, o que sobrava para uma pequena margarida como ela?  Quem seria realmente importante? Ela poderia ser importante para alguém? Não demorou muito e a margarida foi ficando murchinha de tristeza.

Logo apareceu a menina que cuidava do jardim. Todos os dias, ela pegava um regador e passava por todas as plantas, tomando conta de cada uma. Quando a menina passou pela margarida, tomou um susto. A margarida estava muito fraquinha.

A menina correu até a sua casa, buscou algumas ferramentas e tirou a margarida do jardim. Colocou-a num vaso e cuidou dela o dia todo.

Quando a margarida se sentia melhor, resolveu fazer uma pergunta para a menina.

Por que é que você resolveu cuidar de mim? Todas as plantas do jardim são mais importantes que eu.

A menina olhou bem para a margarida e sorriu. “Quem é que disse uma coisa dessas?” – quis saber.

Bem, - respondeu a margarida – todas as plantas do jardim dizem que são mais importantes que eu. Umas porque são mais bonitas, outras porque são maiores ou porque são mais espertas. Achei que eu não era assim tão especial.

A menina deu um beijo na margarida.

Você sabe o que é ser importante? – perguntou

Não. – respondeu a margarida.

Ser importante é quando você é especial para alguém. É quando alguém te ama muito e pensa em você muitas vezes. É quando alguém se importa com você. Ser importante não é ser mais bonito ou esperto, nem ser maior ou mais forte. Ser importante é ter a capacidade de fazer com que alguém goste muito de você. Não importa quantas cores você tenha ou a sua altura. Todos são importantes e fazem a diferença só por existirem. E você é muito especial e importante para mim.

A margarida entendeu e sorriu. Se ela podia ser o mundo de alguém, sem dúvida, ela era a plantinha mais importante do mundo.


sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Eu queria um HD externo.





Eu queria um HD externo para o meu próprio cérebro. Queria poder ter outro lugar, que não fosse a minha cabeça, para armazenar algumas coisas. Seria uma bênção poder me livrar de alguns arquivos e fazer um backup de outros.

Se eu pudesse mesmo ter um HD externo, iria organizá-lo em pastas. Tudo ficaria bem compartimentado e juro solenemente que alguns assuntos não seriam visitados nunca, jamais. 

Iria começar pela pasta do trabalho. Essa ficaria irremediavelmente no HD externo e os arquivos só migrariam para a máquina original quando batesse o cartão de ponto. Eu pararia de me preocupar no meio da madrugada com os exames dos pacientes e com as coisas que poderiam ter sido melhor desenvolvidas. 


Faria uma pasta para meus escritos, principalmente os importantes. Ali, faria um backup de todas as ideias que me aparecem num flash em momentos totalmente inapropriados e se recusam a voltar outra hora. Colocaria nessa pasta também o meu medo de me frustrar e toda a ansiedade que, em alguns momentos, os textos me fazem sentir. Encheria essa pasta com diálogos, observações do cotidiano, situações, descrições e personagens. E buscaria cada uma dessas informções no momento oportuno. Acrescentaria ali algumas gramáticas e técnicas de escrita, bem ao lado do novo acordo ortográfico.


Teria uma pasta para erros. Minha cabeça está lotada deles e eu tenho o hábito intragável de ficar remoendo cada um por dias a fio. Seria um alívio poder me desfazer desse conteúdo de vez em quando.


Faria uma pasta para boas lembranças. Um backup seguro para momentos que gostaria de poder gravar na memória para sempre.

Incluiria uma pasta para sonhos e objetivos.


Teria uma seção de lembretes, coisas a fazer e obrigações.


Faria um espaço com a única finalidade de me obrigar a fazer exercícios físicos e usar o telefone celular.


E a pasta mais importante de todas seria uma totalmente vazia. Não colocaria nada lá. Nada de medos, sensação de impotência, raiva, tristeza, euforia, nada que me lembrasse de compromissos, de erros, de faltas. Essa pasta seria o meu maior tesouro. Seria acessada com frequencia, toda vez que eu precisasse fugir de mim.


Claro que o HD precisaria de uma capacidade enorme, mas sempre se pode sonhar, não?

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Uma singela opinião sobre o novo trem do metrô



Essa semana estava na estação do metrô com meu companheiro livro, aguardando. Em quatro anos de metrô, descobri que levar um livro comigo é indispensável. Meia hora para ir e meia hora para voltar são um tempo precioso que, no início, era ocupado com ... nadica de nada. Percebi que isso era um erro. Primeiro porque ficava absolutamente entediada e, segundo, porque eu invariavelmente me via obrigada a enredar por uma conversa de elevador que durava meia hora. ¬¬


Entendam. Não tenho problema nenhum em conversar. Pelo contrário, acho que falo até demais para o meu próprio bem. Mas daí a ficar uma hora do seu dia conversando sobre como está o tempo ou ouvindo as lamúrias de alguém sobre o preço das passagens ou o quanto o trem está lotado? Nem pensar. Tenho outras coisas a fazer.


Cheguei a pensar na possibilidade de fazer crochê. Sim eu faço crochê e ponto de cruz. Coisa de avó, mas é ótimo para esvaziar a cabeça. A gota d'água foi o dia em que um moço, ávido de conversa, me pediu para ensiná-lo. Eu acabara de atingir um limite. Definitivamente eu não queria ficar conversando com gente que eu não conhecia. Então comecei a ler. Toda vez que a porta do trem abre e eu entro, enfio a cara no livro e vou saculejando até o trabalho. Trato de esconder bem o rosto, porque acho que eu tenho cara de faladeira.


E é esse o ponto em que voltamos ao início do texto. Quando o trem parou na plataforma, vi que era diferente. Entrei e achei meio estranho. Os bancos que ficam lado a lado, deixando um corredor estreito foram colocados encostados na parede do trem. Sobrou um corredor enorme. "Vai dar pra entulhar um monte de gente aqui"- pensei. Diminuíram consideravelmente as barras verticais para a gente se segurar. Agora só tem lugar próximo ao teto. "Droga. Vou ter que ir de salto todo dia agora". Mas o pior só veio quando a gravação que anuncia as estações começou.


A voz é chatinha e fala o nome das estações em português e inglês. Ninguém merece. "Próxima estação: Arniqueiras. Next station: Arniqueiras. No metrô é proibido agaixar e se sentar no piso dos trens. Não incentivem o comércio e as esmolas...Desçam pelo lado direito do trem" Gente! A mulherzinha da gravação não pára de falar hora nenhuma. Um inferno.


 Tô perdida. E eu que lia para fugir da falação alheia e agora o próprio metrô é que fala pelos parafusos... Quem sabe daqui há alguns dias eu consigo uma estratégia para me concentrar novamente. Quem sabe vou começar a chegar no trabalho em alfa.


Este fica sendo o primeiro post da série desventuras no metrô. Garanto que a série poderá ser alimentada indefindiamente.


Beijinhos
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