sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Crônica de um papelzinho na janela.






Um conselho: nunca tentem adivinhar o que se passa na cabeça de um escritor, a menos que não se incomodem com o jogo de tentativa e erro. A mente de quem escreve é terreno incerto. É pássaro que não se pode engaiolar. É terra que a ninguém pertence, a não ser aos sonhos. Repito o conselho: nunca tentem adivinhar o que se passa na mente de um escritor.

E se digo isso, não é por vontade de parecer mais imaginativa do que sou. Esse aviso surgiu da constatação inevitável de que a mente de quem escreve é metade imaginação e, bem, a outra metade também.

Nunca espere que um escritor se mantenha aferrado ao mundo real. A realidade muitas vezes é âncora. Não exija que um escritor se abstenha de imaginar uma conspiração, ao ver duas pessoas desconhecidas falando baixinho em uma mesa isolada do restaurante que ele freqüenta. Nem espere que ele deixe de fazer mentalmente a descrição de um dia lindo. Não acorrente um escritor aos fatos. Permita que ele se apodere das nuances e nunca, nunca mesmo, suponha que sabe o que ele está pensando.

Vou dar um exemplo banal, que até a mim surpreendeu. E você, querido leitor, tente não me julgar uma doida de pedra.

Voltando essa noite para casa, percorri meu caminho para o metrô, como tantas vezes fiz. Ouvi música e observei a noite. Tudo absolutamente normal. Enquanto aguardava o trem, tirei as amarras do pensamento e descansei a mente da objetividade exigida para o trabalho. Fiquei quieta, ouvindo uma canção de Jason Mraz e pensando coisas desconexas. Quando o trem parou, entrei e sentei-me. E foi então que aconteceu.

Havia um pedaço de papel imaculadamente dobrado, no batente da vidraça, ao lado do banco onde eu me sentara. Um papel branco, onde se podiam perceber letras impressas, cujo significado era indecifrável. E fiquei olhando o dito papelzinho. Juro que contorci-me em cólicas para saber o que estava escrito, mas não olhei. Ao invés disso, passei a me divertir, imaginando a história do papelzinho.

E foi quando me apareceram dois personagens: Tiago e Lorena. Ele, um homem de trinta e cinco anos, jornalista e fotógrafo, ruivo e meio gordinho. Ela uma estudante de medicina de vinte e seis anos, filha de um empresário envolvido em um esquema de lavagem de dinheiro.

Ele não a conhecia, a princípio, mas apaixonou-se por sua imagem capturada acidentalmente em uma de suas fotos das praças da cidade. Como era linda, a moça impressa em preto e branco, sentada sob uma árvore, com olhar perdido em algum ponto do horizonte, como se houvesse perdido a vontade de viver! Depois de algum tempo, acabaram se conhecendo num evento beneficente que Lorena organizava anualmente.

Apesar das diferenças, os dois acabaram se apaixonando. Mas não estavam destinados a permanecerem juntos. Tiago trabalhava numa revista influente, que acabou denunciando o esquema de corrupção do qual o pai de Lorena participava.
A moça não sabia dos negócios do pai e ficou horrorizada com a situação. Não poderia negar a desonestidade paterna, nem fechar os olhos para o mal-estar provocado pela denúncia. Tratava-se do fim de um relacionamento muito sonhado. Não houve volta. Os dois nunca mais se viram. Exceto um dia, sem querer, quando tomaram o mesmo vagão no metrô.

Lorena entrou no trem e viu Tiago sentado ao lado da vidraça. Logo que a viu, Tiago pegou um pedaço de papel, escreveu algo, amassou e deixou no batente da janela. Levantou-se e, na primeira parada, deixou o trem. Lorena sentou-se onde estivera o homem que tanto amava. Sentia-se gelada. Tentou engolir. Sua garganta estava seca. Apanhou com dedos trêmulos o pedaço de papel e abriu-o. Uma frase de três curtas palavras puseram seu mundo de cabeça pra baixo: “Nunca te esqueci”. E daquele momento em diante, as coisas jamais seriam as mesmas.

Meia hora de distração, o pequeno pedaço de papel na janela do trem me proporcionou. Trinta minutos em que, juro, ninguém poderia adivinhar o que eu pensava. E é por isso que eu insisto: não tente supor os pensamentos de quem escreve. Não resuma seu sorriso aos conceitos ordinários de triste a alegre. Não simplifique a alma de um escritor, em hipótese alguma. Não porque ele seja algo mais importante. Nada disso. Esse conselho se deve apenas ao fato de que quem escreve costuma ver e imaginar demais. Porque ele não sobrevive de outra maneira. Porque de outra forma nunca será feliz.

O papelzinho, nunca saberei seu conteúdo. Eu jamais cometeria a heresia de estragar a linda história de Tiago e Lorena com a brutalidade de um recibo.

Beijinhos
Fê Coelho

1 comentários:

J Araújo disse...

Lindo o conto, parabéns por nos brindar com tão linda história. Só mesmo uma escritora para saber narrar tão bem assim. Valeu!

Bjs

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