Estou pensando muito seriamente em desenvolver o texto abaixo e fazer dele algo maior. É uma personagem que me apareceu há mais de ano e que, volta e meia, vem me perguntar: "Por que é que você ainda não escreveu a minha história?" Acho que estou devendo isso a ela.
Apresento a vocês a Rosa:
Faz frio hoje. Muito frio. Mas o pior de tudo é sentir que isso não é
apenas uma condição climática. Sinto afirmar, caro leitor, que hoje lês a carta
de uma mulher vazia. Percorres as letras e frases de uma mulher que tudo perdeu
e que, por algum tempo, não soube para onde ir. O vento uivando em minha janela
nada mais é que um eco fraco do meu desespero, da minha falta de opções. Se
tudo pelo que vivi foi-me tirado, pelo que viverei agora?
Esse lugar desconhecido não me é mais estranho que o que sobrou de mim
mesma. Sinto que até mesmo a minha imagem no espelho mudou. O mesmo rosto que
outrora se mostrava liso e amigável, agora aparece carregado de um amargor
indescritível. Não consigo sorrir com a mesma doçura de alguns meses atrás –
não que eu tenha tentado ou tenha motivos para isso. Um sorriso que aparece em
uma pessoa cuja alma foi tirada não é mais que uma ironia e decorre do torpor
em que às vezes nos imergimos.
Dizer que não odeio o lugar onde estou seria uma mentira, mas também
não poderia ficar em minha casa. Tudo que me era caro foi-me tirado e sinto que
a melhor maneira de me recompor seja ir ao princípio de tudo. Como uma ferida
que não pode cicatrizar enquanto houver tecido morto em seu leito, assim tem
estado meu coração. Por mais dolorido que seja o processo, sinto que devo
limpá-lo de tudo o que for necessário, para que possa novamente ficar inteira.
E tal como as grandes feridas, essa deixará uma cicatriz que não poderei
esquecer.
Vivi muitos anos em uma grande e imponente casa. Filha de uma família
abastada, não conheci muitos motivos para me exasperar. A vida costuma ser bem
fácil quando se tem tudo, não é mesmo? Vivi assim protegida durante toda a
minha infância e juventude. Dos cuidados de meu pai, fui transferida às
atenções de meu jovem e muito apaixonado marido. Tudo como devia ser. Passava
os meus dias entre chás, bordados e conversas frívolas com minhas amigas,
desempenhando bem o meu papel de respeitável dama. Enchia minhas noites com
idas a teatros e conversas ao pé da lareira com meu marido. Ao contrário de
minhas amigas, eu não tinha motivos para censurar-lhe os modos ou me encolher
ante o seu olhar. Isaac era um homem muito carinhoso e me cercava de todas as
atenções que eu podia querer.
Durante o primeiro ano de nosso casamento vivemos sós em nossa casa,
sonhando com nosso primeiro filho, que nos foi dado por Deus quando eu
completei vinte e um anos. Artur era um menino vigoroso e bom. Cedo trocou seus primeiros passos e começou a
falar. Ainda me lembro bem do som de seus passos e não posso descrever em
palavras a solidão que essas lembranças me trazem.
Isaac era um oficial do exército e esse é o princípio de tudo o que
ocorreu. Lembro-me da noite em que estávamos todos sentados em frente à
lareira, ouvindo rádio. Esse seria um programa totalmente normal para aqueles
dias, exceto pelo fato de Isaac se mostrar mais tenso que o habitual. Ao
questionar-lhe o motivo de tanta seriedade, recebi um abraço e um beijo. Isaac
disse-me que não havia motivo para preocupação. Mas eu podia sentir que algo
estava muito errado. Naquela mesma noite, depois de nos deitarmos, ele disse-me
que me amaria para sempre, não importava o que acontecesse. E eu senti medo,
como se estivesse há um passo de uma grande perda. Hoje eu digo que teria dado
minha vida para estar errada, mas eu não estava.
A Guerra havia chegado ao país, com uma força avassaladora. Como uma
fábrica de viúvas e órfãos, ela estendeu seus domínios por todos os lugares. E
a morte, sua funcionária mais fiel, trabalhava sem descanso. Ao seu lado,
operavam a fome e o desespero. Meu marido foi destacado para o campo de batalha
e ficamos, Artur e eu, em nossa casa.
A princípio eu tentava manter as coisas o mais normais possível.
Brincava com Artur e cuidava da casa para que quando Isaac voltasse, pudesse
ter um lar agradável novamente. Mas o tempo passou impiedoso e a miséria
começou a andar em nosso encalço. Encontrei trabalho e comecei a me dedicar à
tarefa de sustentar meu filho. A cidade entrou em racionamento e faltava
comida, água, remédios e empregos decentes.
O primeiro golpe, do qual tento irremediavelmente me recuperar, foi a
perda de Isaac. Aquela noite fora fria e eu e Artur dormíamos juntos na cama
que eu e Isaac dividíamos com tanta alegria. Dois homens fardados bateram à
porta e, quando eu atendi, entregaram-me o cordão de prata com a plaquinha que
identificava meu marido. Junto com isso, entregaram-me a bandeira de nossa
Pátria-mãe. Disseram que sentiam muito e eu não pude saber o que eles disseram em seguida. De súbito
senti-me fria e meio vazia. Voltei para o quarto e, abraçando o que sobrou de
minha felicidade, chorei por horas. Meu inferno pessoal estava apenas no
início.
Dois meses se passaram até que eu pudesse chorar apenas escondida. O
sentimento de desamparo que se abateu sobre mim era insuportável. Observava meu
filho brincando e imaginava mãe é essa, que manda seus filhos morrerem por ela.
Então resolvi que seria uma mãe melhor que nossa maldita Pátria. Dediquei-me
com afinco a manter meu filho feliz. Fazia-lhe as vontades sempre que possível
e adequado. Brincava com ele e pescávamos. Fui para Artur tudo o que podia ser.
Ele se tornou meu único motivo para continuar aqui e contemplar o trabalho
incansável da morte, sem me entregar à sua carga. Mal sabia eu que ela me observava
tão de perto.
Artur estava com três anos, quando adoeceu. Pneumonia, foi o que me
disseram. Não havia hospitais ou remédios. Tudo estava desviado para os campos
de batalha. A sanha dos homens por poder não tem limites. Quando uma luta por
poder é travada, tudo o mais é colocado de lado. Pessoas dão a vida por ideais
que não lhes pertencem, recursos são desviados dos que necessitam de atenção. A
sensação que eu tinha era de que ao final desse período turbulento, teríamos um
país povoado apenas por veteranos de guerra. E eu sequer podia contar com a
esperança de encontrar entre eles o meu marido.
Ver meu filho ficar cada dia mais doente e fraco e, por fim, entregar
sua vida nas mãos frias da morte foi o fim da etapa sana de minha existência.
Algumas coisas simplesmente não podem ser esquecidas; e digo que ver um filho
magro e enfraquecido fechar os olhos para a vida e amolecer por completo em
seus braços é a pior de todas elas. Jamais poderei me esquecer de que, por um
momento pude olhar nos olhos da morte e jurei vingança. Foi quando peguei meus
poucos pertences e me alistei no exército, disposta a trabalhar em um Hospital de
Campanha.
Não que isso seja um consolo. Passarão muitas vidas antes que eu possa
dizer que estou confortada, mas poder vingar a morte de meu filho e me negar
aos braços dessa trabalhadora incansável é uma maneira de me levantar todos os
dias. Enquanto houver uma vida que eu possa tirar de suas mãos, ali estarei.
Enquanto eu puder rir-me de suas costas se afastando, eu o farei. E me
lembrarei todos os dias daqueles que ela me tirou. E essa será minha vingança.
Não me julgues feliz, caro leitor. Sinto informar que estou há muitos
passos da felicidade. Mas reconhece em mim uma mulher que, mesmo amargurada,
resiste.
Rosa
18/02/1946
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