quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Cartas para Ninguém - Felipe e a Vó


Oi Vó.

Choveu aqui hoje. Eu sei que essa não é uma informação que vá modificar o seu dia, mas mudou o meu. A chuva caiu e me lembrei da senhora, com aquele croché infinito nas mãos, olhando pro pasto molhado e se preocupando com as galinhas e as mil goteiras do galinheiro. Aí deu uma saudade sem tamanho e resolvi escrever.

As coisas por aqui são mais ou menos o que eu esperava. A gente estuda, trabalha, se embriaga umas cinco vezes por semana. Às vezes três. Esquece essa parte, Vó. A gente não se embriaga, mas diz que sim, que é pra manter o moral. Na verdade, eu vivo com um livro na mão e me mato de trabalhar na lanchonete, pra receber uns trocados.

Eu pensei que fosse ser mais fácil. Pensei que a vida dos rodeios não fosse me fazer falta. Achei que nunca me arrependeria de bater o pó das botas e ir me encher de manias da cidade. No fundo a gente sempre se ilude um pouco, né? Mas me disseram que a caneta é mais leve que a enxada e eu acreditei. De fato ela é, Vó. O que pesa é essa saudade enorme do tempo em que eu podia apenas estar; de quando eu tinha tempo de ver a vida. O que pesa é a falta que me faz aquela risada que nós deixamos de dar, as discussões que deixamos de ter. O maior fardo, Vó, é o tempo que não aproveito ao seu lado.

A vida tem dessas coisas, eu acho. A gente vive escolhendo e se agarrando às escolhas que faz. Algumas delas são levinhas e a gente traz elas penduradas no canto do sorriso. Mas outras são como aquelas toras que a gente buscava pro fogão de lenha - pesadas e desconjuntadas; difíceis de carregar, mas úteis afinal.

Estou me esforçando, Vó. Logo, logo eu vou ter dinheiro para reformar o galinheiro.

Me espere para o natal. Chego uns cinco dias antes. Mentira. O dono da lanchonete me confisca o fígado se eu fizer isso. Chego provavelmente na véspera de natal, levando comigo uma cesta básica, as guloseimas que a senhora tanto gosta, uma garrafa de cidra (que a gente vai bebericar devagarinho, pra sentir as bolhas estalando na língua) e todo o meu amor.

Com carinho,
Felipe.

sábado, 20 de setembro de 2014

O homem, o caminho e a carga - uma parábola.



Era o homem, seu caminho e sua carga - um saco de juta, cheio de coisas. Um homem jovem, saudável e forte; um caminho longo e difícil de se cumprir e uma carga suportável, a princípio. Tudo o que ele precisava fazer era levá-la até o final do caminho. Nenhuma novidade, até então. Muitas pessoas têm trilhas a cursar e fardos a transportar. O que difere este homem específico é o fato de que seu carregamento variava de acordo com o sua atitude.

Para cada situação que se apresentasse ao longo da estrada, a depender da reação do andarilho, acrescentava-se peso ou retirava-se. Caso o homem se irritasse ou praguejasse, uma pedra era acrescentada ao saco; caso sorrisse ou visse o melhor da situação, uma pedra era retirada. E assim ele prosseguia, transportando sua carga por caminhos ora escarpados, sinuosos e incertos, ora floridos, planos e cheios de vida.

Ocorre que, tendo tomado a rabugice por estilo de vida, o homem, ao longo do tempo, se viu obrigado a carregar um fardo muito maior do que poderia suportar. Havia juntado pedras demais, ele sabia. Encontrou pela estrada um homem que fazia o mesmo: levava consigo seu saco de pedras e outras coisas; um saco bem menor, ele notou. Não era justo! Tantas coisas terríveis haviam acontecido com ele e ainda era necessário levar aquele fardo tão pesado. Enquanto isso, o outro homem sorria e caminhava a passos ligeiros, mal percebendo sua própria carga. Pediu ajuda e recebeu. Mas depois de alguns quilômetros, a divisão sobrecarregou o companheiro de jornada e este devolveu ao homem suas pedras. E ficou pelo caminho, se recuperando do esforço.

O homem encontrou pessoas em casinhas bonitas e ofereceu suas pedras como presente. E quem gostaria de recebê-las? Ninguém. E o homem seguiu sua trilha, carregando um peso que era só seu.

O andarilho sentia-se só, fraco e vencido. Seus passos vacilavam. Até que ele tropeçou e caiu. Seu fardo soltou-se de suas mãos, subiu bem alto, contrastando com o céu de infinito anil e chegou ao solo, espalhando mil pedras ao redor do homem. Eram tantas, de tão diversas queixas; e formavam no chão um mosaico tão desconexo de reclamações, que o homem não viu alternativa senão rir. Ele gargalhou como nunca fizera. Riu de si mesmo, de suas convicções e da inutilidade do peso que carregava. Reconheceu a impossibilidade de transferir a outras pessoas um fardo que ele mesmo havia montado. Riu-se de sua insistência em permanecer agarrado a partes do caminho que tão longe já estavam. E decidiu que não queria mais nenhuma daquelas pedras. Nesse dia, houve uma risada tão longa, como poucas vezes já se viu.

Então o milagre aconteceu: uma a uma, as pedras tornaram-se flores. Cada uma de suas lamúrias deixaram de ter importância, porque o homem compreendeu que pouco importava o fardo; o caminho, sim, era fundamental.

Juntou tantas flores quantas conseguiu e as distribuiu pelo caminho. E deixou de se preocupar tanto, e de se importar tanto com coisas de menor valor. Fixou-se à verdade das pessoas, à luz de cada dia, aos olores e aos sabores; fez-se amigo dos amigos e afastou seu caminho dos inimigos. Distribuiu sorrisos, aprendeu a rir de si mesmo e tornou seu fardo o mais leve que poderia ser.

E finalmente foi feliz. Porque descobriu que o destino - esse caminho que trilhamos, cada um a seu modo - pode nos apresentar momentos floridos ou áridos. Mas a vida, essa que carregamos até o final da jornada, pode e tem exatamente o peso que escolhemos levar.

Beijinhos
Fê Coelho.




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