terça-feira, 26 de março de 2013

O Ciclo dos Dentes - um texto sobre amor



Não foi hoje que a ideia para essa crônica surgiu. Na verdade, o argumento que pretendo explorar vem se apresentando a mim gradativamente ao longo dos últimos nove anos e alguns meses - a saber, o tempo decorrido desde o dia em que adquiri a credencial mais importante da minha vida: uma em que está escrito "Mãe". O que tenho pensado, por quase uma década é que a vida se apresenta em ciclos - com trajetórias maiores ou menores, mais ou menos óbvias, felizes ou nem tanto - movimentos de vida que vão a algum ponto e retornam, trazendo consigo os aprendizados e encantamentos que lhe são próprios.  As pessoas surgem e desaparecem, a terra se aproxima do sol e recua, as marés têm sua dança própria, relações são construídas e desfeitas, para daí a um tempo ressurgirem com outra cara, outro sotaque, outras pessoas. A verdade é que a vida dança à nossa frente e deixa conosco alguns sinais de sua coreografia. E nesse bailado, vendo minhas filhas crescerem, cheguei à conclusão de que o amor de mãe acompanha o que passei a chamar de "O Ciclo dos Dentes".

Eu explico.

Quando minha primeira filha nasceu, fiquei apaixonada por ela de uma maneira tão sobrenatural, que gostaria que ela permanecesse daquela forma em que eu a encontrei para todo o sempre. Eu tinha em minhas mãos uma boneca semitransparente, praticamente careca e banguela. Tudo naquela criança era a expressão do meu encantamento. Tudo era novidade e representava a maior perfeição que eu jamais observara. Daí meu desejo de que nada mudasse. E uma noite eu sonhei que a minha pequena sorria para mim com a boca cheia de dentes. Nunca vou conseguir explicar a ninguém, leitor querido, a ira que me acometeu no sonho. Eu queria saber quem era responsável por todos aqueles dentes no meu bebezinho banguela. E queria que a pessoa que inventou tudo aquilo providenciasse a remoção de todos aqueles indícios de que o tempo passaria, mesmo que eu quisesse retê-lo.

E acontece que o tempo, de fato, passou. A parte boa é que, quando os dentinhos de leite lá foram marcando presença no sorriso de minha filha, o encanto só aumentava. Lá estava a mãe babona, exibindo os dentinhos da filha como se fossem o maior troféu do mundo. E eles eram! Aquelas perolazinhas eram a expressão de como o tempo transforma as coisas, as pessoas, os sorrisos e o amor - que naquele caso só fazia crescer.

Durante muito tempo apaixonei-me por aquele sorriso cheio de dentes de leite, pequenos e delicados. Até que foi chegando a época de dar adeus a eles, aceitar a visita da fada do dente e entender que a vida é assim mesmo, cíclica - sempre substituindo algo, levando coisas e trazendo outras em seu lugar. Assim, os dentinhos de leite deram lugar a dentões que pareciam chicletes numa boquinha pequena, num rosto delicado e tremendamente infantil que - valha-me Deus! - está mudando para um rosto de adolescente.

Que maravilha, observar essas mudanças e ver o quanto esse sorriso está ficando parecido com o meu. Sabe, leitor, acho que as mães nunca deixam de procurar traços de si nos filhos. Eles são como espelhos que nos mostram que algo de nós transcende, tapeia o tempo e vai além. O sorriso novo de minha filha me mostra que, sim, a vida muda; e não há nada que possamos fazer, a não ser observar sua beleza. E o que mais poderíamos fazer?

Com minha filha mais nova, o processo já está começando também. As banguelas vão surgindo, trocando meu bebê por uma menina - que vai crescer, viver, amar, cometer seus erros e acertos e que - queira Deus! - terá a oportunidade de contemplar esse mesmo ciclo no rosto infantil e absurdamente terno de filhos gerados em seu ventre.

A vida é assim, não é? Os dias se sucedem, modificam e desenrolam. Os ciclos acontecem. O que existe para ser mostrado sempre aparece. E o que existe para ser memória para lá vai depressa.

Afinal, o amor não é matéria que diminua com o tempo. Não o amor do qual eu estou falando. Esse tipo de amor, você deve saber, leitor querido, é do tipo que só aumenta. Especialmente porque as mudanças trazem coisas novas pelas quais o amor vai sempre se encantar.

Sou feliz por acompanhar esse ciclo virtuoso de mudanças e de vida. Sou grata pela vida que se modifica diante dos meus olhos, acompanhando meus sorrisos e mandando-me beijos lindos e sempre renovados. Porque acho que é disso que o amor se faz. É disso que preciso para viver bem feliz.

Uma excelente noite a todos.

Beijinhos
Fê Coelho


quinta-feira, 21 de março de 2013

A estrada que se colore



Tenho andado pensando que viver é algo como se equilibrar entre aquilo que se sabe e aquilo que se ignora. É uma espécie de caminhar sobre uma estrada que só se ilumina à medida que passamos. É um pavimento que só tem sua verdadeira cor no instante em que nossos pés ali estão, nem um momento à frente, nem um atrás.

Acredito que nossa capacidade de avaliar situações seja condicionada ao que dessa estrada já vimos. Quanto maior o caminho percorrido, maior o repertório e os recursos para interpretar fatos, sensações, expetativas e sentimentos. Preciso ressaltar, entretanto, que embora a extensão do caminho que ficou para trás seja fundamental para guiar nossos próximos passos, sozinha ela não é suficiente. Consideremos as muitas maneiras de se percorrer um caminho.

Podemos caminhar por essa estrada misteriosa e absolutamente encantadora com pressa. Quantas vezes não nos pegamos apressados para resolver a vida, como se ela fosse um quebra cabeça que se monta conforme um ritmo que nós mesmos determinamos? E quantas vezes corremos pelo caminho, ora loucos pelas novidades que esperamos encontrar, ora fugindo de um momento que desejamos evitar? E quantas vezes nos impomos metas irreais, como se esse quebra cabeça que vivemos dependesse apenas de nós para ser montado? Acontece que cada uma das peças se mostra quando quer. Nem todas estão prontas para o encaixe quando queremos. Ocorre que, quando fugimos ou nos apressamos demasiadamente, o caminho perde sua graça. Deixamos de ver as cores do que nos rodeia, ignoramos as particularidades daquele momento específico da vida, que pode trazer consigo tudo o que precisaremos ter num momento futuro.

A ânsia de conseguir, de conquistar e de realizar é válida, leitor. Precisamos de objetivos assim como precisamos de desafios. É salutar olhar para frente, para o vindouro. O que não podemos é esquecer do que temos agora, ou fingir que nada temos. Não podemos viver correndo, voando sobre essa estrada que é a vida, apressando tudo, vendo tudo apenas superficialmente. Cada um dos nossos dias tem seu colorido próprio, seus detalhes, uma beleza que não pode ser vista a menos que se demore um bocadinho. Algumas vezes é necessário esquecer um pouco o que ainda virá e tomar um café consigo próprio, ouvindo atentamente, prestando atenção àquilo que acontece, ao que se sente, ao que faz regozijar e ao que faz sofrer. E aceitar. E tomar para si. E entender que isso faz parte do caminho, que faz crescer e que, assim como todas as outras coisas, também vai passar. A menos que retenhamos algum trecho do caminho.

A tentação de nos retermos em algum ponto da história é constante. Várias vezes queremos apenas ficar. Existem algumas curvas de nossa vida que nos agradam tanto, que simplesmente não conseguimos ir em frente. Alguns pontos da estrada são de um colorido tão belo, que gostaríamos de viver ali para sempre. E há também o oposto: alguns trechos foram tão escuros e conturbados que amiúde retornamos ali, para tentar entender o que foi tudo aquilo, para ver se encontramos algo que se perdeu, ou simplesmente para saber rever e lamentar. Ocorre que não vemos as cores do que se foi exatamente como eram: algumas vezes estão mais douradas do que foram, outras mais cinzentas. É normal visitar o passado, rever conceitos e fatos, mas se aferrar a ele como a única coisa que se tem é insensatez. E digo isso tanto para o que fez sorrir quanto para o que fez chorar. Algumas vezes, o que se precisa fazer é simplesmente continuar, acolher o que virá e permitir que o vindouro nos encante, nos ensine e faça seu papel.

E não adianta viver traçando caminhos alternativos, partidos do "se". O "se" não é ponto de partida, nem de chegada. Ele é exatamente aquilo que nunca existiu, que talvez pudesse ter existido se algo diferente tivesse acontecido, se uma decisão tivesse sido tomada, se uma ideia tivesse surgido, se o tempo tivesse parado, se tivesse sido mais rápido. O "se", leitor, é uma ilusão que criamos para não lidar com aquilo que é, foi, ou poderá ser. O "se" é a armadilha mais difícil de escapar, porque somos nós que a colocamos em nosso próprio caminho e  - convenhamos - cada um sabe em que curva da própria história ficam os pontos estratégicos para se pôr um "se".

Tudo isso me recorda uma conversa que tive com minha mãe, há muitos anos, quando perguntei a respeito de uma situação específica: "como você soube que essa era a decisão certa?". E ouvi, naquele dia, uma das respostas mais sinceras que já obtive: "a gente nunca sabe; na verdade, a gente vai tentando errar o mínimo possível, mas nunca temos certeza de nada, filha".

Acredito que seja assim mesmo: cada dia sendo colorido no momento em que nossos pés tocam a estrada, sem nunca saber muito bem as cores do que virá, nem ter certeza de que o que ficou para trás foi exatamente como o vemos agora. Apenas continuando, vivendo, prestando atenção e tentando acertar.

E se escrevo essas coisas, o faço para organizar minhas próprias ideias, leitor. Contudo, quem sabe, apenas quem sabe, tudo isso faça sentido para mais alguém.

Beijinhos,
Fê Coelho.

terça-feira, 5 de março de 2013

Qual é a do cone?



Disse Arquimedes: dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu levantarei o mundo. Pois eu digo: dê aos homens alguns cones e eles tentarão dominar esse mesmo mundo.

Uma coisa anda me agoniando há um tempo: a maneira como o uso dos cones altera o rumo das pessoas em qualquer lugar que se vá. Eles estão em vários locais e, usados em diversas situações, querem basicamente dizer "ei você, não venha aqui; fique exatamente onde está, porque aqui tem um cone e todo mundo sabe que os cones são a máxima autoridade no que se refere ao cerceamento do direito de ir e vir".

Se uma pessoa não quer algo em algum lugar, basta colocar um cone e fim de papo. Especialmente se esse lugar for uma faixa da rua, uma vaga ou até um estacionamento inteiro. Colocou o cone, já era. As pessoas não passam e, normalmente, não questionam. Posso até estar errada, mas raríssimas vezes eu vi alguém desafiar a autoridade que vem dessa forma de demarcação territorial.

Quando eu era criança, existia uma coisa que dava poder aos garotos: ser o dono da bola. Se o dono não concordasse com a brincadeira, ele pegava a bola e ia embora. A molecada ficava toda chateada e acabava, para evitar o transtorno, fazendo tudo o que o pequeno déspota detentor da brincadeira quisesse. Ora, tenho a sensação de que esse conceito, extrapolado para a idade adulta, confere ao dono do cone o poder de gerir, de decidir quem passa onde, quem vai, quem fica e de cercar pequenas porções de mundo.

E não se engane: algumas coisas são condenáveis no mundo dos adultos; outras são inaceitáveis. Por exemplo: xingar algum parente de um segurança pode ser algo condenável; mas derrubar o cone é inaceitável. Esse ato, o de derrubar a demarcação territorial, é uma demonstração de falta de atenção, de desrespeito às regras e à autoridade. Ora, a pessoa precisa ter a tranquilidade de demarcar um lugar e saber que aquela demarcação - embora seja bem mais no plano das ideias (visto que apenas a moral impede que se retire um cone de seu lugar) e muitas vezes nem se justifique tanto assim - vai continuar valendo.

Se por um lado os cones inspiram o respeito dos cidadãos de bem, os mesmos objeto são os alvos da cobiça de gente que não tem muito juízo. Daí surgiu uma mania dos últimos tempos: roubar cones. Vez por outra, ouve-se por aí a história de alguém que tenha se apropriado do cone alheio. Acredito que isso, mais que uma questão de desonestidade e falta do que fazer, passe pela rebeldia, pela aventura de estragar a cerca do vizinho. É como se a pessoa dissesse "olha aqui o que eu faço com a sua dominação do mundo!"  Desconfio inclusive que o ato de se roubar um cone possa ser interpretado como um "bundalelê ideológico pós-moderno".

O que, então, justifica um texto para discutir a finalidade dos cones? Absolutamente nada, exceto o fato de eu achar muito engraçado a maneira pela qual esses objetos inertes e desprovidos de quaisquer elementos especiais se tornem responsáveis por conferir um status de dono do pedaço a quem quer que os distribua.

Passe por aqui. Não vá ali. Evite essa faixa. Estacione na próxima vaga. Faça um ziguezague de dez metros, pare o carro, mostre a carteira de habilitação, os outros documentos e, caso esteja tudo certo, siga adiante. São muitas ordens e ações variadas, mas que obedecem basicamente a mesma regra: seu mestre mandou!

Eu mesma reconheço meu quinhão de obediência e meus pensamentos de rebeldia. Vez por outra, passo por uma série de cones e penso: "lá estão os danados, me dizendo o que fazer ou não. Afinal, qual é a do cone? Quem ele pensa que é?". Aí me dá uma agonia, de ver que aquele pequeno objeto representa uma autoridade maior que minha própria autonomia e me dá uma vontade lascada de parar o carro, tirar o cone e estacionar assim mesmo. Mas não faço nada, leitor querido. Sabe como é; manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Beijinhos
Fê Coelho


sexta-feira, 1 de março de 2013

Só e acompanhado - uma crônica sobre sinônimos.



De todas as saudades que já senti - e olhe que não foram poucas - a mais engraçada que já registrei é a saudade que sinto de mim mesma. Já tive saudade do que passou, do que foi, do que não foi, do que devia ter sido, do que eu supus que fosse e do que eu gostaria que tivesse sido. Já senti saudade de gente, de bicho, de lugar, de cheiro e até de sentimento. Até por livros e  personagens eu andei suspirando. Mas saudade de mim mesma, só recentemente é que eu fui sentir.

Entenda, leitor querido. Se é verdade aquele ditado que apregoa que "é com o sacolejar da carroça que as abóboras se ajeitam", acredito que minha carroça esteja fazendo o seu trabalho. Os movimentos da vida têm me ensinado alguns truques e um deles foi aceitar que dois são os relacionamentos que vão nos acompanhar até o fim da vida: o primeiro é aquele que temos com Deus e o outro é aquele que temos conosco. Que as relações familiares, as amizades e os amores são importantíssimos, já é senso comum. O que quero salientar é que nenhum desses relacionamentos se sustenta, se antes deles não houver um forte entendimento de cada um consigo mesmo.

As pessoas andam procurando alguém que as complete; alguém que as "salve". E eu me pergunto: salvar de quê, minha gente? Onde está o algoz? Quem as oprime num momento de silêncio, num fim de tarde qualquer, enquanto o sol vai embora e a quietude vai chegando?

Tenho a sensação de que nem sempre sabemos a maneira certa de nos fazer companhia. Somos chatos demais, indulgentes com o outro e acusadores conosco. A doçura é um processo longo, resultado de muito conhecer, de muito aceitar. Ora, acredito que não diríamos a um melhor amigo nem a metade dos impropérios com que nos brindamos, ao cometermos um erro. O perdão e o reconhecimento mais difíceis de se obter são aqueles que vêm de nós mesmos. E são esses os que mais importam, afinal.

Quando se aprende a ser companhia para si mesmo, inicia-se um processo maravilhoso, em que o outro passa a complementar a sua felicidade sem o fardo de ser responsável por ela.  Os amigos passam a ser simplesmente amigos, familiares passam a ser familiares. Cada um passa a ocupar o seu lugar e a receber um amor mais puro e honesto - porque se baseia no próprio amor e não na necessidade que se tem do outro.

É nesse momento que o silêncio se enche de possibilidades. Porque "só" e "acompanhado" podem bem ser duas formas de descrever a mesma situação.

Não me leve a mal o leitor; sei que parece coisa de doido, mas acontece que aprendi a ter um borogodó, um chamego, uma coisa comigo mesma e sinto falta de mim quando não me faço um agradinho. Sinto saudade de me levar para jantar e de ir ao cinema comigo. Sinto falta de andar sozinha e ouvir o que tenho a dizer a respeito do dia, do clima e de qualquer outra bobagem - como um personagem novo, uma frase chicletosa, uma música de que gosto. Isso tudo porque aprendi a ser companhia para mim. É por isso que tantas vezes apenas uma música, um bom livro e uma xícara de chá são o suficiente. É assim que aprendi a estar bem: primeiro comigo para então estar com os outros.

Pode ser que eu esteja errada - como tantas vezes já estive - mas tenho a sensação de que quem aprende a estar só nunca fica sozinho. Por outro lado, quem não consegue ser companhia para si mesmo jamais estará propriamente acompanhado.

Beijinhos
Fê Coelho





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